|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
durante o deserto o tempo se confunde em cada vasto grão da areia. o deserto já era habitação antes de nele enterrarmos nossos pés. a redundância de suas tempestades se instala em cada verso. nosso rastro era consumido pela fome do vento. o deserto dura enquanto por ele se procura. aqui o deserto se faz palavra no poema. impossível era dizer qualquer coisa antes dele – poema [ou deserto] – quando nele[s] já éramos destino:
Mots sur la Page
[para um poema de Lambert Schlechter]
Foi num doismilidoze que o mundo acabou
eu também morri.
Mas amanhã, eu viverei novamente
meu coração batendo ao ritmo do seu nome
o nome-mundo que habita
quando te crio verdade, poema.
palavras em seu próprio desconcerto. palavras na página – “mots sur la page” – à sombra dos desencontros acertados. diluídas das escamas do que um dia nadou como verbo – [soltas] – elas coagem o estado lúcido das frases. e lambert schlechter espera pelo poema ante o risco
de uma linha se tornar verso. um mosaico difuso. talvez um aceno que edifique essa letra viciada em imagem. quem sabe um susto. o espanto necessário. e finalmente abrir os olhos como quem escuta a pulsação das manhãs.
foi num “doismilidoze”. tento te contar detalhes. mas só sei enigmas. atentados. sei que o mundo foi interrompido. contudo não sei dizer datas ao certo. nem sempre elas têm importância porque às vezes o mundo sempre acaba.
sobram as calçadas fartas na geografia dos ossos. elas permeiam os calos dos pés nessa busca. uma procura válida pelo verso quando não se tem escolha: “foi num doismilidoze que o mundo acabou / eu também morri”.
morrer com o mundo na morte do poema. viver talvez o estratagema necessário ao apocalipse dos nomes. palavras palavras [as páginas desse dilema]. nascem no princípio dos ritmos. receber a mão abençoada por antiguidades e saber que tudo é passagem quando se vive novamente.
a fala como toada morro abaixo daquela canção esquecida. mas amanhã… amanhã “eu viverei novamente”. crente da linhagem que se renova na fala do poema. o coração forte. músculo potente na eloquência profunda em que / imagem / voz e mundo coabitam a metástase dos muros.
o substantivo. o pronome. o “nome-mundo”: esse lugar [morada] de tantas danças. do nosso corpo-subjuntivo rente ao silêncio que nos sagra e junto nos habita. abrir o dorso da língua e descobrir o conectivo que nos une à linguagem. o propósito infinitivo que nos chama e nomeia.
gestação: fonte longeva dos cios. o útero em vertigem enquanto a cria amamenta a mãe na criatura do que em nós se fagulha e incendeia. “quando te crio verdade”: refaz-se o enredo intenso que articula o veneno dos ócios. verdade e memória se consumam e se desencadeiam reciprocamente. dessa transmigração profusa palavra por palavra nasce da tessitura do que em mim se chama verso quando te crio, poema.
P.S. topei com o livro A duração do deserto (poesia, Patuá, 2014), de Nina Rizzi, e foi um impacto imediato. a duração do que dura e desertifica extrapolando as páginas do livro, ganhando os poemas, tornando-se pele, respiração e salto. a esses estados de existência precisamos dar importância, e meu modo de fazer isso é assim, dialogando, tentando transcriar o poema – e qualquer referência a Augusto de Campos não é mera coincidência. tomei posse do “Mots sur la Page” da Nina, provoquei-o um pouco, estiquei-o dentro dos assombros do que se chama instante e se faz agora. confesso: nada do que se disse escrito será amanhã de novo. o poema só existe agora, depois já será outro. a poeta, que também é tradutora, historiadora, pesquisadora e editora publicou ainda: tambores pra n’zinga (poesia, Orpheu / Multifoco, 2012), geografia dos ossos (poesia, Douda Correria, Portugal) e quando vieres ver um banzo cor de fogo (poesia, Patuá, 2017).