A PLENA INCOMPLETUDE DO QUE NOS FALTA E SE REVELA: UMA POÉTICA DO TEMPO EM WANDA MONTEIRO – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

desde a fome, um excesso: um poema que devora. um poema que pretende o verso para a mortificação das horas: “a morte de nascer para dentro” tal qual a destruição das mãos sobre o peito antigo, que ora elabora o incêndio da primeira costela, ora incinera os rastros da nascença que se vela nessa humano-sacrossanta epopeia.

a liturgia. o ato. o feito. o início do que se produz por inteiro desde a noite. quando a lua se acoberta de rascunhos e nosso precipício interior se conjuga: “abre fina fenda / funda – escura” nesse corpo que consagra a comunhão com o sagrado. deus e o diabo em copertença verbal. sempre inaugural: gênese. o escuro desse mundo que se afunda fundo na brecha como o indício do que se abre. sempre aquilo que se fecha pela metade.

desde a fome. a sequidão. a exigência pela secura. a pele. o corte que rasga pelo avesso. a ferramenta. a faca. o coice. aquilo que vive porque destroça. porque aceita do corpo sua condição temporal – faminta – e sedenta. não uma ânsia comum. mas uma necessidade. uma força que reage e precisa “matar a sede com suor e foice”.

o desafio desse instante retroage ao presente. uma fala que talvez reate braços. lançados ao trabalho com avidez, desencaminham a saciedade de alguns sorrisos parcos. a espera é sempre uma questão que não se completa. ou se completa no que falta. talvez sejamos o que falta da espera. ou, quem sabe, a hesitação que permanece.

de ti não quero outra coisa senão presságio: “o tempo lhe escapa na incompletude” do que é agora e nunca a ressalva da lacuna em cada verbo. uma liturgia do tempo. seus silêncios se instalam ante a incerteza de uma filosofia por ruir. erguem-se todos os nascedouros em despropósito vertical. comovem as palavras o vórtice do poema. deslocam-se os vértices das estrofes quando não escritas. porque talvez nem existam. porque talvez nem estrofes. o poema é pouco para seu próprio corpo. um marginal. um rio encenando margens. uma parede. um muro erguido sobre rachaduras. uma infiltração:

“na janela o espelho
no espelho o tempo
preso no silêncio da imagem
vítrea imagem
que no átimo do olhar
não nos reconhece”

chegar à janela e se deparar com a própria face. o espelho. um aceno. uma centelha para a cena da partida. vitrificados estão os olhos ante o espanto coagido pela espera. isso que passa e não volta. o presente constante no tempo da incompletude. a pausa sonora do silêncio. um rito. travessias que nos incorporam às margens. atravessar não é chegar ao outro lado. atravessar é reunir as margens no caminho: correnteza.

perdem-se os olhos de quem se olha na miragem do poema. esmiúçam vestígios entre as ruas dos tercetos. quiçá sonetos. imprevistos na dobradura do ruído. manifestam-se as cores em azuis silentes que vão do céu ao rio. converge para imagem o alargamento do verso em prosa de conclaves. nada é senão um artifício na elocução do que se reconhece como superfície do espelho. aqui se revertem brios na lisura do desterro. o espaço aberto. o ermo. tal como enterrar os pés onde as mãos não alcançam. às vezes nem joelhos.

a renúncia ao que se vê. não reconhecer a própria casa: a cara: desabitação. o fora. o longe. o avesso reverso do tempo. o espelho e seu inverso. a canção imersa na folia do que se perde. o eu de todos os outros tantos outros eus. o poema. o princípio: “o verbo desse deus feito de luz e silêncio” que se apaga e fala tanto quanto cintila e cala.

P.S. aqui se travou um pequeníssimo diálogo com a obra recém-publicada A liturgia do tempo e outros silêncios (Patuá, 2019), de Wanda Monteiro, poeta nascida nas margens do Rio Amazonas e atualmente residente em Niterói. além do poema citado na íntegra, os trechos com aspas são versos retirados de alguns poemas ao longo da obra. fiz jus ao espaço que aqui me cabe e me apoderei deles – poemas. numa leitura de apossamentos, tentei algumas corrupções, algumas torções, talvez até alongamentos poemáticos. assumo esse assenhoreamento numa permissão presumida a partir do que a própria poeta diz ao final de seu livro: “aqui não é começo nem fim, não é chegada nem partida. No tempo, há uma liturgia que ainda não foi decifrada”. sem querer decifrar nada, e sim aceitar o convite que sua poética promove, habitei esse caminho que continua seguindo… ou apenas peguei uma curva…