A VIOLÊNCIA DO SAGRADO – NATALIA BARROS

|SENHORAS OBSCENAS
Por Natalia Barros


Um homem esfrega um maço de folhas na árvore. Um homem num ato ritualístico, dentro do parque. Um homem benze a grande árvore, um Pau-ferro, açoitando-a com um maço de folhas e inscreve na árvore um círculo. Há uma violência no seu ato. Uma força dos que sabem que a qualquer momento podem ser abordados. Existe uma sequência nas suas ações que atravessa o visível, onde a loucura caminha feito amor-próprio. Quero sentir no meu plexo o tronco daquela grande árvore. Da árvore que se impõe com elegância no centro do parque. Preciso escutar o cerne daquele tronco. O homem me interrompe, e circunda a árvore com braveza.  Olha como se eu fosse uma intrusa que tivesse passado da linha permitida. Talvez eu estivesse avançando muito, em direção ao centro botânico da alma vegetal.

Ele, o homem, é treze, me disseram. Um número de desordem matemática. O número que o nomeia: louco. Eu tinha chegado primeiro, estava ali antes de aquele homem aparecer. Uma mulher sozinha, no meio do parque. Diante da árvore e da vontade. Uma mulher perto demais de desejar o coração da árvore. O homem se interpõe entre a árvore e o desejo. Posso pressentir no tronco tricolor o fluxo da seiva, mas preciso atravessar o círculo da insensatez que o homem escreveu, com clareza, balançando o buquê ao redor da árvore. Ele não acaba aí. Ele canta enquanto benze: Hosana nas alturas.

É hora do Angelus. A luz da tarde escorre através das folhas delicadíssimas. Posso ver, posso acreditar, mesmo sem compreender, que algo definitivamente acontece. A noite chega devagar. O homem não tem conversa, não se explica, apenas diz: é coisa minha. Diz isso com propriedade. Tudo silencia ao redor. Todos os animais se encolhem, os galos não cantam. O meu desejo não canta. A tarde derrama sua última luz alaranjada sobre a mata, até as raízes internas das árvores que crescem no escuro. No centro ritualístico do mundo esfregar um maço de folhas numa árvore delimita um lugar. Esfregar o lápis no papel delimita – e ritualiza – outro lugar. Posso ir de um lugar para dentro do mesmo lugar. Posso atravessar. Posso ir para o outro lado, basta que eu saia de mim em direção à expansão interna.

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Natalia Barros é escritora e jardineira. Acredita em vida antes da morte. Tem dias que só mar adentro. Escreveu os livros Caligrafias (Oficio das Palavras) e Nuvens Ornamentais (Selo Demônio Negro). Plantou centenas de árvores, tem duas filhas e canta. O texto compõe o livro a rosa real, que será publicado em breve.