A SOLIDÃO TUMULTUADA DAS PALAVRAS NUM INSTANTE POÉTICO DE CASÉ LONTRA MARQUES – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

desde o medo já é tarde a revolta dos apuros. a palavra tangencia o escrúpulo do susto e remedeia a incansável tortura da fraqueza. desde a palavra é tarde o medo da coragem (porque ter coragem assusta). o poema inquieta a estrutura da inércia em cujos ângulos se presenteia a fortuita rotina do inesperado. desde o silêncio, a poesia. desde o poema, a palavra. desde a palavra, o poema:

Ângulos ambíguos
reviram meus intervalos –
tento (jamais)
esquecer: toda palavra
é uma solidão
tumultuada.

a ambiguidade entre o obtuso e o agudo alimenta os hiatos de quem se apodera do poema. a carnadura se completa pela falta, como o queloide que marca o excesso onde há rasgo e vilipêndios. o lapso que medeia “meus intervalos” são tais quais as revoltas que reviram o estômago até não haver mais pulmões para o sopro sincronizado entre tantos fôlegos, entre tantas fugas e variações pleurais.

tentar esquecer o verbo que irriga nascimentos tardios é um desejo – assim como a mão que afaga o descendente de todos os pecados reunidos. mas a (absurda) ironia da palavra acoberta o princípio da maldade antes de se tornar o regozijo por mais dilúvios. dentro das palavras não há contrários. o “jamais” é um “sempre” ornamentado, assim como suas derivações e privilégios. na memória mais profunda de um poema moram todas as habitações. é com a imagem que deito para oferecer meu corpo à ruptura imposta pelas unhas de um verso inacabado.

a palavra, toda palavra – nenhuma palavra. sua solidão é constante. na respiração do feto nem ainda imaginado, ela – a palavra – já se coloca como um ato inquietante. pulsa desde o engasgo destinado ao sepultamento provisório de um corpo falho – [quando o corpo falha é quando fala mais alto que a voz sussurrada na costela dos ouvidos e se desencontra dos seus erros]. no tumulto da palavra, de toda palavra, ergue-se o berço que conforta os cotovelos incrustados nos próprios joelhos.

desde o medo, quando é tarde para sorver o socorro a um poema, a palavra reinventa a epigênese do imprevisto. ela fala. ela nomeia tudo a que pertence como um gesto silencioso na liturgia das imagens. o poema é uma oração que arrebata o mais longínquo dos incrédulos. o poema amputa as veias dos seus versos e irriga a fronte desguarnecida de quem o negou. com a mais certeira das dúvidas, provoca: “toda palavra / é uma solidão / tumultuada”; e ainda diz que

A palavra é parte
do que um corpo será –
improviso
rupestre, face após
face:
algo se desgarra
do ar.

desde inteira ou pela metade, a palavra é parte. tem em seu corpo o corpo de outro corpo, e assim segue numa corporeidade infinda. uno: corpo: aquilo que no mínimo são dois: ambiguidade. integra a corporeidade inexata duma língua forjada a escombros. talvez seja o futuro da substância na estância pertinente ao porvir. [improviso]. a palavra parte ao repentino da rocha: prostrada rente ao súbito silêncio, guarda o presente num futuro desprotegido. um “improviso / rupestre” cujo estatuto da solidez é posto abaixo pelo declínio atávico de quem reage pedralmente.

a cara dada a tapa “face após / face” mediante a geração rochosa do corpo verbal [ou verbo corporal] – (palavra que se desgarra). a palavra agarra a cintura do ritmo e dança com as pernas trocadas da poesia. o que penetra os poros do poema está inscrito “detrás dos dentes, enquanto / a língua / formiga”. está desde antes do sempre, impregnando a criação com seus muitos pós-apocalipses. o poema é um assombro. talvez seja a gênese que se prolonga até o fervilhar do que é tarde desde antes do medo. desde antes do antes.

desgarrar-se do ar como o que pende no ciclo respiratório. devorar o peso da palavra no poema. decantar o verso até que se sobre quase nada. até que se fecunde outro rim para filtrar o resíduo da leitura no que fica, no que vai e entra pela frente, pelos lados, onde não há recantos (não mais). o futuro do corpo depende do que não se sabe dizer ao certo. depende do risco. a palavra é sempre um risco. aquilo que se avizinha repentinamente à semântica dos sobressaltos porque “toda palavra / é uma solidão / tumultuada”. que escapa.

p.s. do livro desde o medo já é tarde (7Letras, 2018), de Casé Lontra Marques, nasceu esse encontro. palavra é algo que nos instiga à decupagem em filigranas. todo composto por poemas breves (ainda que a brevidade seja uma ilusão apenas formal), seu presente trabalho diz muito onde a palavra não alcança, e por não alcançar já está onde deveria estar, sempre esteve. acredito em Sophia de Mello Breyner Andresen, quando ela diz que todos os poemas estão na composição de tudo que existe e que precisamos escutá-los: “nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio”.[1] nesse caso, o trabalho dx poetx está essencialmente em aprender a aprender a escutar, e não apenas com os ouvidos, mas erigir todo o corpo em escuta. de certa maneira, porque é apenas uma leitura que faço, os poemas do livro do Casé trazem essa depuração, melhor, esse súbito flagrante do instante poético, onde cada poema seria um meio de caminho para o lugar cujo destino compõe a diferença que cada um é. afinal, não há destino pronto, muito menos absoluto. há desencontros possíveis na elaboração de uma caminhada, porque caminhar é mais que seguir um percurso. gosto de pensar que no caminho se apreende o horizonte no que ele apresenta enquanto instante possível, chegando à impossibilidade de sua destinação plena, pois a plenitude estaria exatamente nisso que é inalcançável. então, por uma lógica que nada tem de racional, mas sim, ou quem sabe, aponta para um lugar de devoção ao inapreensível, arrisco dizer que um poema – melhor, que uma obra de arte – pode nos possibilitar a querer alcançar o indizível. estamos de súbito à beira de saber quase nada, porque lógica aqui diz o que se perde na tangibilidade do querer conhecer. saber, então, se coloca como a degustação dessa dúvida caolha que nos faz enxergar de retravés e nos posiciona sempre no princípio de onde jamais e sempre estivemos. os poemas aqui, as palavras são – em poesia – caminhos.

[1] in: Relâmpago; revista de poesia. Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava; Relógio d’ Água, n° 10, out. 2001.