: DESDE UM POEMA DE MARIAYNE NANA… O FEMININO: O VENTO: A PÉTALA: – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

é uma flor aberta no meio do mundo. a certeza que se tem é da longevidade garantida em suas cores. o cheiro forte do sol marca a confissão das raízes, e nada se sabe ao certo sobre nada. desconfia-se de que as palavras são tudo que tiver de ser, inclusive o que ainda não é. [a palavra – tal qual o ventre que entalha o silêncio em seus vários nascimentos]. / útero como jarro. recipiente para o vazio transformado em vida, e vida que se dá nas muitas mortes alargadas ao longo das respirações: um acontecimento [do] feminino.

desde a escuta de um poema antigo, as mãos de Mariayne – numa metonímia corporal – foram fecundadas. de Rumi, foi colhido o sopro vital para o prólogo que anuncia o porvir: “Todavia, aprende com a flor: / silencia tua língua”. mais que uma epígrafe, aqui se rumina a experiência silente para a gestação da palavra, assim como sua destruição, num ciclo infindo em que a linguagem se mostra grávida de sentidos:

Não será preciso dizer nada,
Quando tudo se comunicar discretamente
De alguns lugares avistaremos o porto
Onde o império das palavras declina

Leremos no claro silêncio:
—Nossa própria alma—
A porção que celebra o grão da ruína,
E a que comemora o rumo da rosa
São a mesma sede do encontro

Ela responderá por tudo—
Da resistência no centro da corola,
À cada pétala soletrada pelo vento.

nada é preciso dizer ao que se comunica. extremos se despolarizam pela vigência una dos antigos contrários. mais que oferecer um abrigo, há aqui uma abrangência. mais ainda. uma assimilação onde a gênese do mundo comunga de perpétuos brotamentos. discretamente, a palavra primeva é comunicada aos chegantes, o que nos leva a pensar: quem sabe, sejamos todos passagem para o que há de nos tocar. ou talvez em nós a vida se revele conforme a flor aberta ao céu. delírio ainda maior seria sonhar que somos nossos próprios hóspedes e nos reconhecemos todos pelo choro inicial do parto:

/só após assumirmos o capítulo terroso do corpo é que poderemos devorar o jarro onde fomos forjados, a fim de partilharmos com o mundo a eternidade da dúvida./

ao longe do horizonte que se desenha em nosso futuro, “o império das palavras declina”. a solidez das construções herméticas se infiltra de destroços e é posta abaixo a coluna sustentadora do verbo que não respira. mas ante a angústia do que se desfaz, “de alguns lugares avistaremos o porto” e lá nos debruçaremos sobre o que é fogo e impreciso. daremos as mãos aos nossos passados e em roda com nossos devires dançaremos.

prestaremos culto à mãe que nos carrega em cada passo dado ao declínio do certo. seremos terra e todos os elementos, “leremos no claro silêncio” o que nossa alma diz. seremos escuta, o suor que liga amantes durante o amor. depois, num tal momento em que as diferenças sejam ambiguizadas, o corpo será elevado em sua tensão harmônica para se consagrar junto ao fracasso das razões: “a porção que celebra o grão da ruína” tanto quanto a rosa em seu rumo. eis o encontro. o lugar propício para a celebração silenciosa entre costela e vulva.

a rosa – mãe divina em sua perfeição inacabada – compõe-se da esquiva das águas no acontecimento das chuvas. reconhece o orvalho enquanto ele se forma livremente em suas pétalas. / entre o relento e o sabor do vento são fundados arquipélagos nas coxas consagradas pelo sangue mais puro – e “ela responderá por tudo”. filha de todas as mães, acolhe na corola – seu meio, seu centro, sua reunião – a resistência desdobrada nas gerações futuras. a nervura ínfima do botão (enquanto ainda se condensa sobre o próprio núcleo) inflama, explode e se plenifica: “Na criação poética da sua própria natureza, o feminino se acende”.

o vento pronuncia a rosa durante sua passagem. soletra cada pétala na celebração da ruína e resiste, tal como o ímpeto de se dissipar estranhos na carnificina dos escombros. a viração na tessitura da pétala é incandescente e faz florescer enigmas em cada palavra concebida. o feminino canta a voz da ancestralidade e salienta os relevos da terra numa ciranda em que se perdem os rumos outrora conhecidos. assim nasce o poema, prosa embebida de muitos cantos, cujo amparo é tanto mais inteiro quanto mais se adensa a dança no seio desse corpo que ao se desfazer se torna raro.

p.s. uma imagem dá nome ao livro. uma imagem. um pedaço de verso. um poema diverso da fronteira desguarnecida da poesia. essas ruminações geram ascendências. do topo da maior queda, um poema é dito e há a conciliação entre o mundo e seus silêncios. [são cânticos vertidos em poemas]. / fico com ecos de dança nos olhos, com movimentos seminais no corpo, ao me encontrar nestas sagrações erigidas pela Mariayne Nana em seu Pétala soletrada pelo vento, livro publicado pela Urutau, em 2018. / aqui, dançamos. damos as mãos em roda e nos entregamos ao nosso próprio ritual de ser. / o feminino está em todas as coisas. é a terra de onde brotamos. / da tensão entre as diferenças, onde feminino e masculino se copertencem em reunião – necessário equilíbrio –, o que há é acolhimento. / a potência da rosa se presentifica para que possamos perceber a força aflorada no íntimo entre vida e morte. o útero. a mãe. a matéria (mater) de onde tudo nasce e para onde tudo volta ao morrer. ciclo. essa leitura é uma ciranda.