|SENHORAS OBSCENAS
Por Wanda Monteiro
I
ainda trazes nos olhos
o luzir da água que te acordou
lembras?
tu – menina afagando a quase manhã
na pele do rio
todo lume
todo espanto
espelhados na tez de tua face
cravada em teus pés
pequena raiz coberta de pouca terra
úmida-nascente
verde-leito
onde abriste tua carne para a vida
o tempo guarda-te no líquido gesto
e o rio corre em teus olhos
II
teus olhos miram invisível rio
nele
palavras que nunca disseste
nadam como peixes cegos
nadam famintas
morrendo à míngua
de tua coragem de dizê-las
no leito
um Eu nunca dito
naufraga
reverberando seus assombros
e soçobros
III
teus olhos
minguados
padecem do estio dessa tarde
o sol bebe
gota à gota
teu rio
quando a noite chegar
deita-te no chão de tua noite
colhe a chuva de teu sereno
quem sabe
tu possas chorar sobre tua madrugada
a carne orvalhada
dói menos
dói menos
menos
IV
turva água a tua
que de teus olhos
escorre nua
molha a pedra
face tua
abre-lhe fenda
funda
escura
fina janela para teu subterrâneo cais
abismo de teus Ais
V
no ventre de tua rosa tardia
nasce um tempo
de espera solidão silêncio
um tempo de plantar
no pouco de tua terra
uma semente de rio
espera pelo rio nascer
ainda que nessa espera
um frio minuano atravesse-Te
tomando-Te o corpo na angústia
que tu possas não germinar
nem crescer
nem florescer
no canto
de uma derradeira estação.
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Wanda Monteiro é escritora, uma amazônida que herdou a sina de escrever em poesia a geografia de um mundo possível e mais humano. Obras publicadas: O Beijo da Chuva, Ed Amazônia, 2008; ANVERSO, Ed Amazônia, 2011, Duas Mulheres Entardecendo, Ed TEMPO, 2014, AQUATEMPO, Ed Literacidade, 2015 e A Liturgia do Tempo e outros silêncios, Ed. Patuá, 2019.