DAS RUÍNAS AOS ECOS NA BABEL IRÔNICA DE PATRÍCIA LAVELLE – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

 

casca fina descamada pelo estouro. o agudo singelo de um voo que pode romper a qualquer instante o tempo de uma palavra erguida por uma bolha de sabão. não se sabe o que dizer da palavra que diz a si própria. da palavra que verbaliza e vem a ser. e se é. e sempre foi o lugar de nascimentos. da morte, que é uma gênese em despedida. 

bye bye babel. adeus à língua. à palavra que deixa vestígios por onde passa. palavra que lambe. incorpora. faz de sua pele o alvoroço para muitas existências. palavra que diz e acolhe os muitos corpos verbais. que se fecundam em seu ventre. uma renúncia. 

dizer é sempre uma abdicação ao silêncio. mas renunciar também provoca o peito para o afeto e a fé de que tudo jamais dará certo. porque palavra é voo e nunca está onde se encontra. o certo diz a invenção para acalmar tormentos. um trânsito. um DIÁLOGO:

 

Senti teu olhar endurecer
entre as minhas
palavras:
intumescência imediata
naquela fenda
obscura
entre o corpo e o discurso.

 

de tudo que se diz avessamente, o olhar registra forte o estágio prematuro do que existe por ser nomeado. pela língua a imagem comanda a ilusão entre sonhos e palavras. o corpo se erige entre voz e ouvidos faminto por linguagem. corpo é linguagem de palavra encarnada. o tônus lisérgico pela espera do instante. este que nunca chega. que sempre já foi. um paradoxo ontológico habitante da “fenda / obscura” entre o dizer e o conjugar. a palavra é onde há penetração.

eu não consigo parar de dizer que o nome represa o voo das coisas numa palavra. tampouco que a imagem salva da derrota os flagelos de um corpúsculo luminoso sobre o qual não se faz menção nos compêndios de poesia lunar. eu não consigo parar de dizer que o poema é seu próprio corpo e refunda o complexo etiológico da palavra no confronto com a linguagem. isso tudo talvez seja uma transferência. um aporte sobre o desvio dos significados dados a um nome. uma METÁFORA:

 

Suspenso o significado
a palavra espera
aberta
numa frase estranha,
brecha de onde o sentido
se projeta. 

No abismo da imagem
o verbo é vertigem.

 

espero – embora até já consiga um ensaio sobre o refúgio das letras no busto dos fonemas. o princípio altivo de uma palavra é suspenso para que sua demora deságue entre oferendas, daquelas que fazem sangrar a efígie do poema. 

bye bye. insisto no morfema como a cama que acoberta qualquer frase estranha. babel que alimenta a fome de estranhos uns pelos outros – [sintaxe complexa] – quando se encontram no meio de uma sentença e fundam o paradoxo de um verso incorporado à fossa profunda da palavra aberta.

“a palavra espera”. espreita o sinal. o artifício gutural da voz que recobra os intestinos numa discursofagia, ao projetar o sentido nascido da recondução a um modo divergente de se convergir sempre para a linguagem. significados outrora edificados são depostos de sua nomenclatura. o verbo. a palavra. a balbúrdia do reencontro onde diferenças deflagram a nascividade do que é pleno por ser outro. uma encruzilhada. uma imagem.

bye bye babel quando o corpo da palavra é mais poema. quando o corpo do poema é travestido de lonjuras. onde não há lugar certo. tampouco teorias. nenhum estabelecimento é uno “naquela fenda / obscura / entre o corpo e o discurso”, quando o que se procura é a própria busca. o abismo. o frio na barriga ao se cair no próprio torso. a brecha. a fenda por onde se entra de corpo inteiro.

o verbo que se procura. o destino que se instala no “abismo da imagem”. olhar o fundo da palavra como se buscasse o som da queda de um corpo lançado ao cerne dessa dúvida. “metáfora”. “diálogo”. o fim que se finda em muitos recomeços. “o verbo é vertigem” e com ele fazemos roda nessa dança em que mãos são laços e oferendas. damos as mãos e ouvimos a palavra sagrada. a mãe. a matriz. a LÍNGUA MATERNA do poema:

 

Ouve, meu filho, um tempo:
a língua era uma só
melodia
em redondilhas ingênuas
rimas minúsculas
e naturais
como passarinho em lata
de leite ninho
[…]

 

p.s. palavra tem gosto de leite materno quando nos damos conta de que estamos em constante redescoberta de nossos começos. palavras, das coisas mais sagradas, damos nossos corpos às suas habitações. com Patrícia Lavelle, essa prática de consagração verbo-corporal se realiza em seu livro Bye bye Babel (7Letras, 2018), todo arquitetado por algumas das possibilidades infindas de retomada e ressurreição do imprevisto verbal. das ruínas aos ecos, vozes são alardes de futuros a serem compartilhados. e assim, pelos poemas aqui mencionados – em ordem de citação: “Diálogo”, “Metáfora” e “Língua materna” –, pratiquei algumas traquinagens hermenêuticas e saí correndo, como fazia quando era criança e tocava campainhas de casas alheias, por aí pelas ruas, e me escondia. uma diversão que só.