Coluna | Escritores de Quinta
Ainda não sei se acordei, se estou dormindo, ou se já morri. Duvido do que é, e do que foi, e nessa encruzilhada entre o sim e o não, puxo, do bolso do uniforme, um maço de cigarros. Vem-me à cabeça que quem não fuma, nem deveria viver, ainda mais aqui, neste lugar medonho, cheio de asquerosidade. Fumo. É o que tem para fazer, acender um cigarro atrás do outro, quieta num canto, numa sequência tática de jogo pensado, de quem está pronto para mover a próxima peça.
As criaturas que passam por aqui, confesso, são pessoas que em nada se aproximam de mim, causam-me embrulho no estômago. Eu, em brincadeira mental, distraio-me por horas ao vê-las se desfazerem em fumaça. Primeiro, os cabelos em brasa, uma luz avivando-se ao redor da cara, vermelha, depois os rostos desmoronam, as máscaras caem em frente aos pés. E elas, sem perceberem as alterações, continuam da mesma forma, andando de um lado para outro no pátio, com suas cabeças de fósforo. E aí, a fumaça, muita fumaça, subindo e subindo para se desorganizar lá no alto num nada. Aquelas mulheres são mesmo engraçadas.
Em outro instante, elas voltam ao normal, com as mesmas faces marcadas de antes, e eu retomo o meu dilema. Faço-me viva, de olhos bem abertos, e observo tudo o que acontece na cadeia. Nem pensar em vacilar, qualquer movimento em falso pode estragar os meus planos que maquinei para me safar desta roubada. Preciso escolher entre o grupo da Zilma ou da Célia, ficar em cima do muro pode parecer arrogância, o que arruinaria com tudo. É agora. Preciso encontrar apoio para não mofar aqui, arranjar um celular. Decisão difícil, se me bandear para o lado errado, já era, coloco tudo a perder.
A Zilma se mostra astuta, mas não gosto do jeito como entorta a boca para o lado quando sopra a fumaça. Isso é sinal de falta de caráter, de pessoa inescrupulosa, aquela que fode a parceira por qualquer coisa. Fumaça se joga para cima ou para baixo. A Célia lança a fumaça para frente feito general, mas nem de soslaio fixa nos olhos do interlocutor. É do tipo que esconde o jogo. Isto me intriga, garanto que anda em via de mão dupla.
As duas são o mesmo, tabaco ruim. Mas não tem jeito, preciso entrar no esquema e descolar um celular. Quero ligar para o filho da puta vir no domingo. Aquele lá sim, tem experiência. Acende o cigarro com zippo, traga profundo, com propriedade; depois solta a fumaça em uma imensa nuvem para absorver de forma implacável quem está por perto. Ali ele penetra, sem pressa, no âmago da pessoa, desvenda, devasta, sem piedade.
Foi por isso que acabei neste lugar. E o ordinário me deixou aqui todo esse tempo. Mas no próximo domingo ele virá. Ah virá! Um telefonema e vem correndo, pedindo desculpas de joelhos. É mesmo um ordinário.
***
Entrei no grupo da mais temida. Zilma promete as dicas de sobrevivência, fornece todos os tipos de drogas, e o principal, um celular. Na hora de tomar sol no pátio, ligo várias vezes para o Osmar; ele, depois da décima chamada, atende. Tem uma voz embargada, disfarça alguma coisa, mas não imagino o que possa ser. Por um lapso, penso que quem fala não é Osmar, que é outra pessoa tentando me enganar, alguém debochando do que aconteceu comigo. Mas ele menciona detalhes que ninguém mais sabe sobre nós e o absurdo daquele pensamento se desgarra para longe da minha cabeça, pulveriza-se.
Entendo, então, que fala assim porque tem algo errado e, por fim, acaba dizendo que prefere mandar o dinheiro pela Camila. Fico puta. O descarado não quer me ver e aos gritos digo que se não vem, sofrerá as consequências. Ele recusa, xinga, ameaça. O escambau. Uso o que aprendi nos quatro anos na faculdade de Direito. Misturo “delação, federais, jurisprudência, doloso e artigo 61” em frases sem sentido e ele se cala. Rompe o silêncio depois de segundos seculares e diz que estará aqui no domingo.
Traz cigarro também. Desligo.
O problema agora é o uniforme, não favorece ninguém. Uma mulher deve se vestir para matar, ainda mais quando vai enfrentar um homem. Mas na mesma hora vejo que aquela insegurança é ridícula. Tenho o que as biscas daqui e de lá não têm: estilo para fumar. E quem tem estilo para fumar, tem estilo para tudo. Durmo tranquila.
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Graziela Brum é de Arroio Grande/RS. Escritora. Idealizou o projeto literário Senhoras Obscenas, o qual coordena junto com a historiadora Adrianá Caló. Participa do coletivo Escritorxs de Quinta, venceu o concurso ProAc categoria romance com o texto “Fumaça”. Publicou com Editor Lumme “Vejo Girassóis em você”. Atualmente escreve o romance Jenipará. Fumaça é o texto de Graziela Brum que venceu ProAc na categoria romance. Em breve, será lançado pela Editora Patuá.