|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
Creio
desde que
não haja o que dizer do poema, caso se procurasse uma explicação. acreditar nesse vazio ao fim do verso. quando nem verso há, talvez. ou seja lá o que for – linha, trocadilho, refrão ou falsete –, acaba no meio do que nem chega a começar. e essa condição é de uma angústia sem tamanho. a gente quer o rio inteiro antes de querer sua margem. e tudo que temos é travessia. aleluia.
como se o poema sempre continuasse. como se a parte fosse já a obra completa. como se inteiro fosse tão logo uma metade. a crença. uma condição. como se o poema antes mesmo de ser poema perguntasse por sua disposição em ser parte nisso que demora e é além.
confia no que vai escrito. olha pro seu filho e pergunta quando ele se tornou excomunhão. olha nos olhos e sem rodeios. faça logo o que precisa ser feito – algo de bruto há na palavra que precisa ser dita. a pronúncia afeita à rudeza de uma verdade que arranca a roupa da passividade
Jogue logo essa terra e vamos embora.
Para de chorar por quem nunca prestou.
Tinha que comer mesmo capim pela raiz… e olha
que a mãe sou eu.
Que esperava, deu só desgosto, ficasse no orfanato.
E agora a gente aqui, tendo
que fingir que gosta
anda, vai embora e some. come o chão que te procura ao longe. “Jogue logo essa terra” tal como a raiva contida e aprendida desde cedo. a amargura por sobre as lembranças de uma tarde de sol. café interrompido. uma misericórdia. uma invenção, de repente. a gente não sabe desse caso. ou até sabe demais. a gente lê um poema e vive umas lembranças, e é tudo verdade. uma verdade dentro da gente, que faz o mundo se inventar algumas vezes. faz recobrar o arsenal orgânico de uma ontologia criada para deleite agônico. ou seja lá o que possível for.
deixa quieto esse trejeito falho de se falar entre joelhos. guarda as mágoas por alguém que não mereça lágrimas e perceba que a verdade de um poema está mais perto da ebulição por imagens do que o cortejo por alguém que não merece lástimas. “e olha que a mãe sou eu”, mas não me faço de rogado ao dizer o que quase sempre se prende antes dos dentes. “deu só desgosto”.
o eu que se diz num poema. o eu que se diz do poeta. o eu que se diz no poeta. “chorar por quem nunca prestou” é uma dádiva de translucidação entre quem jamais vi na vida e o personagem-voz-que-diz quem de mim sou outros. fico – (e se subentende o eu que diz respeito a mim e a você que me lê, porque somos agora a mesma instância). fico. o poema diz e é. o poema exige. o poema habita as fronteiras entre autor, leitor e leitura. não há barreiras. o eu-lírico é das farsas mais bem-sucedidas. não acredito nele.
vai embora e some logo desse embuste. “a gente aqui, tendo / que fingir que gosta” porque o dizer do poema traz o poeta para existir em sua própria voz. que é outra. que são outros. tal como a mãe, que é quem pode desparir o filho – seja isso uma ficção. e dar de costas para quem merecia comer capim pela raiz é um livramento.
mais radical ainda é inventar uma identidade. quando é impossível saber quem fala nessa voz nascida com o poema. e dizer “prazer, esse sou eu” será uma vitória. por mais que se ficcionalize, a voz inventada do poema é a mais real das realidades, por desdobrar-se em muitos outros. não como o encaixe entre o fato e a alusão, e sim como o deboche que faz ruir a razão na competência da realidade. então me apresento, e que se danem aqueles que perguntarem da validade dessa prosa:
Prazer, esse sou eu
filho de doméstica
numa época em que
patrões cismavam
em chamar de filhas
as mucamas. Eu
criado numa mansão
da Barra, obrigado a amar
patrões como avós
sem direito de herança.
Uma coisa aprendi:
a ler livros e a me irritar
com facilidade – lá, onde
o sinal está vermelho
e sempre acabo errando
a baliza – onde ninguém
divide nada, quando
até quem te chamou de sobrinho
diz um dia: a casa é nossa
deves partir. Tá bom, disse.
Só me dá duas semanas
eu sou aqui André Luiz Pinto. eu sou esse poema que fala. eu sou aqui a mãe que enterra o filho e vai embora. eu sou aqui o filho enterrado. eu sou aqui a pergunta que pergunta pelo eu. eu sou aqui a ficcionalização poética do sujeito. eu sou aqui a subjetividade ontológica desse jeito de dizer o que existe pela invenção. dizer “eu sou” é uma farsa. em duas semanas, eu tô indo embora. só não sei pra onde.
p.s. migalha, de andré luiz pinto, foi publicado pela 7Letras em 2018. ganhei do próprio poeta o livro de presente. li. mas precisava pensar. a vontade era de escrever logo alguma coisa. mas os poemas, o livro todo, me faziam empacar porque a vontade era de fazer igualzinho ao andré em sua escrita, essa coisa de flagrar o acontecimento tão de repente, que o próprio instante se assusta e se prolonga numa justa homenagem à eternidade de um momento que já passou. é claro que não consegui. porque eu sou fábio pessanha e não andré luiz pinto. por mais que eu goste de tomar posse do poema, por mais que eu seja andré de um modo poeticamente outro, diferente. então, acabo me tornando ainda mais fábio nessa ranhura insólita aceita desde uma identidade fajuta. eu nem sei mais quem está escrevendo este texto.