|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
é dentro da solidão visível do tempo que a noite em mim começa; e o poema, instância crucial do real, acontece. surge como se fosse o sempre; e o seu princípio, o antes do nada. o poema, se algo se pode dizer sobre ele, seria um limite. encerra em seu espaço o interstício de uma vida tão eterna quanto finda: uma contradição.
a relação entre noite e poema, aqui, se dá nesse acontecimento entre tudo que jamais chegará a um desfecho. viver o desafio dum verso que se escreve encerrando-se, um destino para o qual o fim não é sinônimo de conclusão, mas um princípio a ser seguido.
meu corpo, tal qual o poema que nasce morrendo, procura o alívio numa imagem, o aceno no dizer da própria linguagem. meu corpo, tal como o elo duma fronteira, acolhe o vício por mortes na língua dos recomeços. meu corpo, tal como o poema, é uma divisa, incorporada nos escritos de uns versos tão incisivos quanto leigos. meu corpo, tal qual este poema:
FRONTEIRA
“De vez
Em quando Deus tira-me a poesia,
olho pedra e vejo pedra mesmo”.
– Adélia Prado
Numa noite qualquer o poema vai
Se fazer em mim, não
Se procura um poema e encontrá-lo é engano.
A existência do poema
A estação interior de algo mais
Exterior que a insânia e o poema
Não nasce, surge. Antecede a
Própria palavra, é o verbo do
Sangue das carnes mundanas e do
Insubmisso espírito humano.
O poema não chega a nascer
Porque a noite inunda a
Compaixão dos sentidos; e o dia
Não cabe na mão de uma flor.
Os astros não se harmonizam com
O corpo celeste da palavra,
O poema não nasce.
Apesar da palavra gritar,
O poema inventa uma outra garganta e
Esconde a voz.
(in: Os ângulos da casa – Hirondina Joshua)
repara: o poema é traiçoeiro. chega sem medida alguma, sem festejo, e se apodera: ele “vai / se fazer em mim” como um episódio já desde sempre acontecido. e se faz. ele cresce como um verso sem métrica, desgovernado. rearranja o ritmo cadente da palavra presa entre as línguas, agudo no ranger normativo da mandíbula.
não se busca um poema. sua aparição é da ordem mística do equívoco: “não / Se procura um poema e encontrá-lo é engano”. o desejo de se deparar com o poema no meio da voz instala uma relação demental no sentido poético da palavra. assim se conserva a serenidade de uma frase inconcebível, pois qualquer
alternativa que apareça próxima ao raciocínio lógico de um verso se configura como um lapso terrível ao estratagema da inércia. engana-se quem encontra o poema, pois escrevê-lo é perdê-lo. o poema quando escrito vai-se embora corpo adentro do mundo. em cada leitor, uma realidade enlarguecida… e o procurar-se recomeça.
o poema existe em transição. é passagem. na loucura de sua existência liminar, o poema é ponte: “A existência do poema / A estação interior de algo mais / Exterior que a insânia”. algo mais dentro do dentro, mais algo que algo, onde a sanidade passa longe de um suposto enquadramento astuto. esse caos harmônico, permeado no “insubmisso espírito humano”, afirma o quão intangível é um poema.
antes da palavra, a poesia. o poema vem no reboco. um tijolo mal colocado na parede da sensatez. seu desnível é fundamental para tombos e tropeços, imprescindíveis ao desvario da imagem. sem que se perceba uma parturiência regulamentar, “o poema / Não nasce, surge”.
o poema consente o desequilíbrio em sua fundação. simultaneamente raso e profundo, não tem a ver com procedências. é agora ou nunca o verbo, a carne, o sangue e todo largo gosto mundano da “compaixão dos sentidos”. noite afora, o poema é uma desmedida tal qual o dia que “não cabe na mão de uma flor”. o poema encrava, é espinho: contracepção fecunda .
na desconfiguração da noite, quando os corpos se repercutem e se estranham, aprendemos que o futuro não existe. quando muito, ele se celesta no paradoxo entre palavra e poema, na medida em que “Os astros não se harmonizam com / O corpo celeste da palavra”. [uma diferença necessária ao andamento da imagem, à provocação do surto e ao sacrilégio das estrofes – se é que ainda existem].
a palavra, cuja instância etérea brilha num grito femoral – tão sólida sua demanda verbilusional –, exerce a aparência da voz pela materialidade do poema. este se volta contra suas origens, apesar de todos os fins que vão de encontro à elucidação metalinguística duma poética de aforismos.
é uma exigência tamanha. a ponto de arquitetar uma goela singular que compreenda os motivos guturais dessa avessa governança: “Apesar da palavra gritar, / O poema inventa uma outra garganta e / Esconde a voz”. talvez seja este um ímpeto egoísta, reinventar o sacrifício dos ruídos ao fim olfativo da voz.
esconder a língua como que dizê-la silentemente. ou então, não deixar aparecer uma sílaba sequer, mediante o fenômeno dos nomes. o poema se esconde na voz que o oculta. seria essa uma reinfestação incestuosa entre poema, voz, palavra e escuta. desdobra-se o dizer pela narração enigmática da poesia, que comparece aos próprios infortúnios.
mãe-filhx-e-pai num circuito antinômico, estão prestes a ceder danos à estranha incompatibilidade de suas gêneses. mas é claro, uma certeza: “o poema não nasce”! sua eclosão reside no destino das letras que, reunidas em palavras, são a ausência de tudo que soa fora delas. a palavra, palavra mesmo. sem poesia. tal qual a pedra, ela mesma. uma afronta. uma fronteira
p.s. Hirondina Joshua é uma poeta moçambicana que brinca com a materialidade do inalcançável durante a gestação de um escrito. escreveu Os ângulos da casa, que foi publicado em Moçambique pela Fundação Fernando Leite Couto, em 2016; e, no Brasil, foi publicado pela Penalux em 2017. uma vez ela me disse que não demora muito num poema, que o escreve rápido, como que surpreendida por ele ao mesmo tempo em que o poema se mostra. há nisso uma profanação que sacraliza o gestual metapoético de uma licenciosidade conjunta: o poema a escreve enquanto é escrito. talvez um flagrante desse momento seja “Fronteira”, poema que fez nascer esse meu diálogo [o qual tenta ser] incorporante. o poema me teve. e eu a ele.