A CONSECUÇÃO DESTINAL NO POEMA “TRAVESSIA”, DE ALBERTO BRESCIANI – FÁBIO PESSANHA

coluna | palavra : alucinógeno


trata-se de uma cartografia pessoal/animal. um lúcido devaneio conforme o itinerário nascido da correnteza do rio. travessia é o que nos leva para o outro lado. é também o caminho que nos acompanha. o destino que consagra os habitantes do indiscernível lugar das margens.

a morte… consumação e plenitude de vida: o silêncio que encerra a máxima potência sonora: travessia. / dentro da assunção do tempo para além de sua percepção tripartida, princípio e fim comprazem a unidade irrepetível da experiência do real:  o vigor de ser.

ir avante é um mistério. rumar para o próprio destino talvez seja o maior desafio de cada um. não há como se esquivar das manobras de uma sina, cujo único propósito seja o de sua realização. talvez sejamos como a zebra, o impala e o crocodilo do poema abaixo, que têm seus destinos atados pelas margens do rio:

TRAVESSIA

Na travessia do rio
alguma zebra
ou algum impala
perdem a vida
Todos pressentem
São visíveis as manobras
dos crocodilos
Ainda assim
não há
como evitar os passos,
o ímã do destino
E os animais
atiram-se à correnteza
Precisam saber
o outro lado.

na travessia da vida somos rio. assim como também somos cada zebra, cada impala que percebe seu destino e dele se apropria. pressentir a morte diz acolhê-la, significa ainda assumir a destinação fatal para tudo que é vivo. porque somos o animal que tem no rio o cerne da travessia. que vai ao rio se apossar de sua condição transitória. que vai à morte na imagem do rio que é tanto desvario de correnteza quanto nascividade no ataque do crocodilo. é até possível cogitar que perder a vida quer dizer ganhá-la. isto é: perder e ganhar extrapolam o antagonismo vigente numa leitura dicotômica da experiência do real, a fim de se imporem como fatalidade destinalmente ontológica.

uma possibilidade de compreensão do destino como questão seria aquilo que se manifesta no ato inequívoco da ação. uma liberdade tal, que faz do encontro entre a zebra e o crocodilo a celebração plena da liberdade em se acolher o que sempre fora o seu caminho. liberdade maior é o encoberto do destino que se manifesta no ato de sua assunção. uma vez que por se adentrar na própria morada, “Todos pressentem” as “[…] visíveis as manobras do crocodilo”. há nisso uma escolha, que talvez seja a escolha das escolhas, ou seja, ir de peito aberto para o lugar de onde nunca se ausentara: a morte: eis o nascimento mais profundo. pressentir como sentir de dentro a gênese das “manobras”: o antes.

“não há / como evitar os passos, / o ímã do destino” faz saber o salto. não é necessário que se saia do lugar. o movimento em si diz a apropriação do que já lhe era pertencente. parte integrante de um todo que se dá na medida em que se descobre, que se assume o sentido não apenas como direção, mas como possibilidade: caminho: incorporação. sentir de corpo inteiro o inteiro do corpo: tempo.

não se trata de curiosidade. isso é banal. é pouco. precisar “saber o outro lado” aponta a condição mortal para a eternidade do instante, este que se torna o incessante agora. asseverar que o tempo passa é um equívoco dos mais terríveis. o tempo não se move. o tempo não para. o tempo não vai. tempo e destino se afirmam como morte e nascimento num círculo, cujo princípio e fim são um para o outro a eternidade do retorno. não há medida para o outro lado. talvez possamos enunciar ser incomensurável o tamanho da escolha pelo próprio encobrimento.

os animais [nós] precisam [precisamos] saber o outro lado. não se trata de escolha. não se trata de sim ou não. certo ou errado. céu ou inferno. deus ou diabo. – [pequenas dicotomias que nos distraem das questões realmente importantes]. – trata-se do que é impossível evitar. trata-se da consecução de trajetórias singulares que se encontram num caminho: encruzilhada. o desfecho de todas as escolhas possíveis concentradas num ato de consumação: “[…] os animais / atiram-se à correnteza” porque viver não é preciso.

p.s. sempre que me vejo à beira de uma margem, é quase inevitável a vontade de pular escombros abaixo. de certa forma, assim me vi e ainda me vejo durante o poema “Travessia”, publicado no livro Fundamentos de ventilação e apneia (São Paulo: Patuá, 2019), de Alberto Bresciani. de dentro de uma poético-filosofia, o poema a mim se impôs como limite, regendo minha leitura para incorporações um tanto ontológicas. sei lá se é por aí que a gente deva ir, só sei que ouvi os apelos desses meus silêncios, estes que tanto me pegam de solapão. que os crocodilos nos abençoem em nossas diárias mortes. que a travessia seja o ponto nevrálgico do destino como a assentimento fatal do outro lado: aquilo que precisamos saber e já nos sabe.