coluna | palavra : alucinógeno
você encontra o destino incerto das coisas e chama esse descompasso de poesia. você diz o improvável das ações e nomeia de concreto aquilo que não pode ser agarrado com força. você defende que ter corpo é uma afronta ao inventário de tudo que se designa por absurdo.
das canções guardadas em ouvidos emoldurados, você provoca o desequilíbrio entre ruído e harmonia. as imagens do que se move e respira alcançam o grau do imprestável quando suas mãos retêm o que só se pode dizer em gestos. eu te pergunto sobre as pernas tortas do real e você me diz um poema da Sophia:
Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus, em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma beberá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.
eu penso, te indago sobre o tempo e o poema. você me diz mais, explora o que no verso é dorso: abandonados estamos no processo de cura, desamparados tal como o ser no vento. destruídos estamos de antemão nessa procura que é morte e arrombamento. das falas que se tornam presença em mim, longe estão as colisões com o regramento das normas. cantar se torna a louvação ao corpo simples, isento de apetrechos rijos, a fim apenas da nudez em estado puro.
das experiências que se fazem intensas enquanto as vivemos e do amor que se entrega ao exercício da diferença, eu aconteço dentro das suas inquietações. nenhuma certeza é justa quando imprecisa é a vontade de saltar mil vezes sobre as perguntas ainda não formuladas. eu te faço aquela cara de dúvida e você, que me conhece desde antes do meu nascimento, antecipa o breviário de minhas mãos e me diz, como se regesse uma orquestra em pensamento:
durante as madrugadas é quando o amor acontece com mais verdade. longe dos olhos de quem quer que seja, o segredo dos corpos é guardado para a soltura dos monstros abortados. ainda que parecendo um paradoxo, o dia reflorescerá intacto. por mais que se perceba a indecência dos verbos enquanto se desdobram os lençóis, assumida está a sede no pacto com a alma. diluídos estão os desejos que padecem pela forma, as quais – compromissadas – se encontram desde há muito com o destino dos destroços.
é excessiva a pele no poema. e não só. todo um corpo mais que organismo, em cuja distância são estabelecidos os afetos. estamos prestes a ruir com a expectativa do abraço enquanto conduta subliminar ao encontro. se agora nos vimos em transe, em que nada se enxerga ao longe das mãos, cumpro a rotina em te prestar o escambo pelo afago e te questiono sobre a lógica não literal das coisas. quero saber quando o poema é mundo, quando o lastro da palavra curvada pela imagem estará em seu cume. mas em tudo reside espera. a paciência pela qual são originadas as manhãs nubladas. eu te pergunto quando, quero entender a violência das águas, e você torna a me dizer um poema da Sophia:
Depois da cinza morta destes dias,
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos,
Se dissolver, cumprindo o seu tormento,
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.
o poema fala com a imponência de tudo que resvala entre os dedos. creio que a surdina do vocábulo faça jus ao arranjo da linguagem em nos lançar para dentro de nossos dentros. como uma canção cujo ritornelo marca o ritmo do retorno, a réplica em que me encontro dá vazão ao assombro por tudo que rompe a superfície das águas. faço questão de brigar com as parábolas de um tempo interdito. você diz ser uma ousadia sentir o gosto neblinoso das manhãs em dias de sol e aponta a crueza das horas no amplo aspecto da sorte:
toda espera é pela terra. depois do tempo consumado ou “das cinzas horas destes dias”, quando o martírio próprio dum percurso gestacional se findar, o que virá – tanto quanto humano, dança ou fado – será o que se fará cumprir como invenção do que nos reúne em vida.
inventar-se, na medida em que “A terra o sol o vento o mar / São minha biografia e são meu rosto”. não se trata do lugar como amparo para vidas, mas talvez de uma construção contígua. eu te pergunto pelo lugar que ocupa no ventre dos seus dias e, sem hesitação alguma, você me diz: o enigma está na dissolução do instante. não há forma nem imagem, tampouco caminhos fortuitos. o que se dá é o presente, este momento em que também nos damos. unidos estamos pela exaltação do tempo, que se reinventa na genealogia do agora. a escrita de sua vida está em sua face, bem me disse. toma então consigo a celebração de todas as mortes, pois nelas habita a construção de tudo que se arruína. a decomposição das horas está naquilo que se ergue, e só se ergue porque antes e ao mesmo tempo é morto.
pergunto pela criação do mundo. por tudo que vemos e somos, pela composição do real, pela realidade desdobrada nos acontecimentos que nos atravessam e nos são. você anda e revolve com os pés a natureza do chão. aponta para os detalhes do que nos cerca e se volta para Sophia: “Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro / Sabendo que o real o mostrará”. fico pensando que essa procura é o que nos funda, que a criação disso que se chama realidade está no fundamento do que nos é anterior. penso ainda sermos algo sem início, cujo princípio está no andamento ambíguo com o que se finda. findar-se, então, não seria uma conclusão, mas o renascimento. você para e me pergunta por que tantas dúvidas. eu não sei dizer.
você volta. reveste-se de si. lembra do mar. sinaliza o voo do céu nos pássaros, o quanto há de terra nos seres que se movem. você me mostra o que está lendo. é Sophia de Mello Breyner Andresen. abre o livro sem muito procurar e diz o poema que te encontra:
1
A respiração dos deuses é um silêncio nu
E uma nudez mais aguda poisada sobre as coisas
2
Aqui minha alma se suspende
Como tocando a substância pressentida
3
Eis o centro do mundo seu umbigo
A exacta proporção de presença e vazio
P.S. pra quem quiser trilhar sua própria dança, os poemas citados neste textincorporação foram: “Se todo o ser ao vento abandonamos”, “Depois da cinza morta destes dias”, “Poema” e “A respiração dos deuses é um silêncio nu”, colhidos do livro Obra Poética (2018), de Sophia de Mello Breyner Andresen, publicado no Brasil pela Tinta da China. vivemos um momento bem difícil na política de nosso país, em nossa cultura. que a poesia, então, nos seja um lugar de procura. que cada um encontre sua proporção entre presença e vazio.
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aqui houve uma incorporação.
aqui os personagens são muitos
e são um só.