|Escritores de Quinta
Por Mauro Paz
Dizem que paixões não duram mais do que dois anos. Bobagem. Desde os anos 90, o rap é uma de minhas paixões. Lembro como começou. Era outubro de 1997. Eu estava no ônibus. Escutava a finada Ipanema FM no fone de ouvido. O locutor anunciou Diário de um Detento, dos desconhecidos Racionais. Então por sete minutos, Mano Brown, Edi Rock, KL Jay, Ice Blue invadiram de assalto a minha vida. Comentei sobre a música na escola. Semanas depois, um colega de aula me emprestou o CD de Sobrevivendo no Inferno. Copiei inteiro para uma fita K7 de 90 minutos. Naquele tempo, eu morava em Belém Novo. Zona rural de Porto Alegre. Trinta quilômetros do centro. Uma hora de distância da escola onde estudei. Essa uma hora era o tempo perfeito para eu escutar as doze faixas do álbum. Escutava a fita no walkman azul que comprei numa banquinha de camelô. Em poucas semanas decorei todas as músicas.
Sobrevivendo no Inferno foi paixão a primeira vista. Levei anos, porém, para entender o que me fascinava nos raps dos Racionais. Foi na faculdade de Letras, quando estudei Feliz Ano Novo, do Rubem Fonsceca. Nesse livro de contos, censurado pela ditadura em 1975, o ex-policial Rubem Fonseca trouxe para a literatura brasileira a nova violência urbana que emergia nas grandes cidades. Uma violência sem rosto, praticada por anônimos das mais diferentes classes sociais. Da mesma forma, Racionais apresentaram pra minha geração a violência dos quilombos contemporâneos. Músicas como Diário de um Detento, Capítulo 4, Versículo 3, Mágico de Oz me levaram por uma viagem profunda pelas periferias de São Paulo. Quando a transformação que os Racionais promoveram em mim, disse algo que repito sempre: Sobrevivendo no Inferno é o melhor livro de contos dos anos 90.
Racionais também abriram a porta para eu conhecer uma série de bandas de hip hop e rappers: SWN, Run DMC, Beastie Boys, Public Enemy, Eminem, Sabotage, os cubanos do Orixas e tantos outros. Quanto mais grupos eu conheci, mais claro ficou para mim que o rap é o novo jazz. Digo isso pois o jazz é jogo de improvisação universal. O jazz aceitou e absorveu desde o samba até a música russa. Da mesma forma, o hip hop incorporou vozes e ritmos de todas as quebras do mundo. Pra mim, esse é o grande pulo do gato: pela primeira vez na história os negros da periferia ganharam atenção global para denunciar, através da música, suas dores e alegrias. Enquanto no Blues os escravos lamentavam, com o rap os descendentes desses escravos denunciavam as violências sofridas, desejos e felicidades.
Volta e meia escuto pessoas dizerem que não gostam de rap. Talvez você, leitor, seja uma dessas pessoas. Não sou um especialista no assunto. Não sou músico, nem sociólogo. Sou apenas um homem apaixonado e, como tal, deixo aqui meu convite para você escutar com novos ouvidos Sobrevivendo no Inferno, a obra prima dos Racionais, que virou livro e hoje está entre as leituras para o vestibular da Unicamp. Espero que se apaixone também.
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Mauro Paz é escritor, publicitário e cineasta. Além da participação de diversas antologias, Mauro tem 3 livros publicados: Por Razões Desconhecidas (IELRS), finalista do Prêmio SESC de 2012; São Paulo – CidadExpressa (Editora Patuá); e do romance Entre Lembrar e Esquecer (Editora Patuá) finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018.