|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Graziela Brum
A cena do livro Jenipará que segue, escrevi em 2015, de lá para cá, montei peça a peça da história sem saber de qual floresta/rio falava. Foi em 2018, quando resolvi conhecer a Amazônia, que me deparei com o ambiente que intuitivamente habitada meu texto. Conheci Alter do Chão e o Rio Tapajós durante a festa do Sairé, uma manifestação religiosa, mas que também traz o folclore da região. O livro conta a história dos moradores de uma cidade fictícia, construída à margem do rio Jarurema, no baixo Amazonas. Jenipará (Editora Reformatório) foi contemplado com a bolsa de produção e publicação de obras de ficção – ProAc 2019. Deixo aqui trechos do livro que será lançado em março de 2020 em São Paulo.
Graziela Brum
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“Já não se sabe mais se é chuva ou fogo. Antes a gente se encostava num tronco anelado de inajá, cerrava as pestanas a escutar o canto zaragatado de mil cigarras. Medonhas, anunciavam a temporada de chuva, e o zunido esteiro dos bichos festejava a garoa. A canção da mata é o sopro de uma flauta. A água caía. Os pingos atravessavam os pecíolos, tomavam as folhas a correr num assobio leve, leve e desciam aos poucos até suas finas pontas. Ali paravam a esperar uns aos outros; e se enchiam, redondos, para por fim cairem em outras folhas. Aí está a música, a dança, mais esperada da floresta. Chuva, chuva. Bom de escutar a prosa da natureza enquanto as águas se avolumam à margem do rio, encharcam as flores da terra a esparramar o cheiro de alecrim-selvagem com a xanadu, e a misturar-se com as nascentes de lua cheia. Certo era, naquelas noites, a estrela Awãtaba aparecer em hematita negra lá no alto do céu. Na lonjura certa de revelar que é hora do plantio. E tudo voltava a ser o que já foi. É o giro do mundo. Gira, gira terra com seus milhares de sóis, e, consagra um deus, para cada dia do ano.
Já não se sabe mais. A floresta canta uma música indecifrável, seu perfume não seduz colibris, nem mesmo as abelhas. Agora, olhos e ciclopes ficam abertos para evitar que o fogo nos engula a face, os membros e as almas. Para impedir que as labaredas nos fustiguem como com as cigarras. Aliás, é um corre-corre, de pequenos animais em busca de matar a sede, enquanto a margem vai ficando seca, vai se desavolumando num córrego esvaído. Os pacus, tambaquis e pirarucus se atiram na superfície do rio que nem loucos de um lado ao outro na mentira de uma piracema. Piranha e tucunarés invadem o rio. A vida pela morte. A seca. E tudo vai se dando apertado no pouco que resta da mata. As andorinhas não rasgam mais em bando, uma lá que outra com muita sorte se aprochega desconfiada. Sozinha, a andorinha não é mais a andorinha. A fumaça, produto das queimadas, torna-se impossível, tão insuportável quanto a realidade, e paira sobre o céu dos povoados, sobre os tetos das casas. A pintura colorida da faixada feita para receber as festividades religiosas que homenageiam a Santa, agora leva uma demão de tisna. As casas do povoado ficam acinzentadas. Todas muito iguais. Os seringueiros do Baldaceiro se apavoram, não sabem dizer se fazem bem sair para mata. Tem dias que é melhor guardar a faca corneta, o pote de alumínio e deixar o corpo descansar numa rede na frente da casa. Rezar duas três quantas vezes for para a fumaça na floresta não se aproximar. Nem sabemos se isso adianta. Muita gente nossa não aguentou, deixou o Alto do Purus, fugiu para a região baixa da floresta. Quem sabe lá tem coisa melhor?
Porque aqui, no Seringal Baldaceiro, tem fogo. A queimada é um diabo sem nome, sem referência, e a gente procura a fonte do incêndio, procura o dono do intento, sem saber que a maldade é a mesma essa, a esperança, sem saber se o dia corre pela noite. Fumaça negra, escuridão que se forma quando o sol, abismado diante do que vê, fecha os olhos, a boca, e nos diz: – “Não sou eu, não sou o responsável por tudo isso, nem filho meu o é”, escuta-se o astro repetir, a desdenhar seu próprio reinado. O Deus maior, sol de todos os sóis, não quer a culpa de destruir a floresta. Mas alguém está prendendo fogo na mata, e o sol, mesmo sem querer, alimenta em combustão esse inferno.
Assim, enfrenta-se o útero-terra frente a frente, cara a cara, instiga e queima o solo, a folha, o pasto, os galhos e ainda os bichos. Insanos berros de inocentes, a queimada enfurece as gargantas, que suplicam, devotas em seus deuses, suplicam e procuram o grande sinal da salvação pelos horizontes. Os animais da floresta arregalam os pelos, e no ar escasso, sentem o cheiro da morte.
É a coisa mais triste não escutar o canto do biscateiro, que lindo era ele tritrilhar bem quando o sol a pique, avisando que era hora do lanche do seringueiro. A marmita, feita pela mãe Zeli, reforçada no feijão e macaxeira cozida. Um saco de bananas de todos os tipos, tem comprida, tem ouro, tem peroá. Comida para dar sustância nas pernas e aguentar o tranco de sabe-se lá quantos quilômetros de caminhada dentro da mata. Também é bom para fortalecer os braços. É preciso pegar o cabo do corneto com firmeza e talhar o tronco da seringueira num corte de precisão, numa profundidade certa para não machucar a seringueira.
Aprendi a tirar leite de seringa, riscando pau de castainha. Lá no começo, era difícil, escorregava a faca corneto e aí o machucado no tronco. Uma vez talhei o dedo bem no encontro do risco da madeira com uma canaleta, em que apoiava a mão para dar mais firmeza ao braço. Foi um susto daqueles, sangue que não parava mais. Pai dizia que era assim mesmo, só não se fere, quem não risca seringueira. De pronto, ele puxava a seiva do tronco de um sangue de dragão e esfregava no corte, a pele curava na hora.
O dia passava no galope da onça pintada e o bom mesmo era a hora do descanso. Chico, pai Celso e eu sentávamos na beira de um barranco, lavávamos os pés no córrego, atirávamos água no rosto. Depois, tirávamos um descanso, tem dias que se prestam para uma soneca na sombra de uma samaúma. Certo era que em três o trabalho rendia mais, e o mês ficava bom. Uma fartura.
Assim vivemos, quando não era o fogo a deixar a seringueira em brasa, era esse ruído maldizendo a floresta, esse barulho medonho que ronca ronca a gritar dentro da gente. Um demônio a murmurar à noite, que gruda nos ouvidos e não deixa ninguém dormir. O pior ainda é quando o barulho para, a respiração da gente foge, dá um sufoco na garganta, nos pulmões. A gente fica esperando a árvore cair, seca, dura, a tremer a terra em volta. Motosserra dos diabos.
Dia igual dia, é isso que se pensa. Será que aqui ficamos, ou será que vamos para outras bandas? Nem a mãe, nem o pai, nem o Chico, nenhum de nós sabe o que dizer. O pessoal vive assustado, os homens do desmatamento estão cada dia chegando mais perto do povoado. Perdemos muitas árvores que já estavam prontas para dar o leite. Nos últimos dias, o pai anda calado, falando pouco, agora vive a olhar a fumaça, sentir o cheiro da madeira queimada, a escutar o barulho da morte. Mostra a preocupação em todos os gestos, de quem vive pensando o que é melhor para gente. Não é fácil saber. A coisa está terrível, o Padre faz quase um mês que não aparece aqui no povoado. Antes, não faltava uma semana. Mesmo a natureza, é em vão que se mexe, remexe, agita, tenta reagir a toda destruição do fogo. E lá na imensidão de um céu vazio, aparece uma ou duas nuvens pequenas e murchas, espremidas na remota ideia de uma garoa. Bobagem, tudo uma grandíssima besteira. O fogo segue passagem, cobre as bainhas senescentes nas plantas jovens, as espatas, infrutescências velhas, as sementes deterioradas na superfície próxima aos troncos. O fogo engole todas as plântulas, o bioma, e ainda mais grave, o fogo é capaz de engolir o nosso espírito, capaz de fazer as almas pousarem num final definitivo. Porque com o fogo, nem corpo, nem espírito resistem, queima e dissolvem almas. Aí, é o extermínio da nossa raça. Um final mais vazio que o começo. Por isso, é preciso ser rápido, mobilizar os homens do povoado, chamar os guerreiros das aldeias que vivem por aqui. Todos nós devemos lutar contra o ataque dos posseiros, dos madeireiros, antes que a floresta morra e o pior aconteça.”
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Graziela Brum idealizou e coordena o Projeto Literário Senhoras Obscenas. Vencedora de dois concursos ProAc em São Paulo, com Fumaça (2014) e Jenipará (2019) – que é o primeiro romance de uma trilogia sobre a Amazônia -, também publicou Vejo Girassóis em Você (Lumme), de prosa poética.