|LORCA
Por Charles Berndt
Às vezes passamos tempo demais mergulhados em nós mesmos, perdidos em oceanos profundos de mágoa, angústia, revolta ou medo. São tempos de introspecção, em que apetece mais estar calado, quieto, como se não houvesse nada a ser dito, nada a ser feito. Tudo vai mal, o mundo é terrível. Evidentemente, isso não é verdade, sempre há algo a ser feito e o mundo e a vida podem sempre ser encarados a partir de um ponto de vista mais otimista e generoso, mas nem sempre temos forças para tal. Mergulhados neste mundo rarefeito, virtual e cada vez mais individualista, perdidos entre likes e manchetes catastróficas lidas rapidamente na timeline do Facebook, às vezes é difícil resistir, minimamente, a qualquer sentimento de depressão.
Nesse sentido, gostaria de trazer à tona o que Freud disse sobre o luto e a melancolia. Dos muitos conceitos que elaborou, talvez estes sejam dois dos mais importantes, ao lado da interpretação dos sonhos. Para o filósofo alemão, então, o luto se caracterizaria por um sentimento de dor, de tristeza, de baixo-autoestima, diante de uma perda – a morte de uma pessoa querida, por exemplo –, que se vai diminuindo aos poucos, até ser relativamente superado. Assim, o luto é algo normal e aceitável, faz parte de nossa vida e deve ser respeitado e vivido. Mas Freud distinguiu, ainda, o luto normal do que ele chamou de luto profundo, que seria a perda do interesse pelo mundo externo. Nesse caso, é como se o sentimento de perda tomasse conta do ser e não houvesse nada capaz de substituir o que se perdeu. Seja como for, o luto sempre passa com tempo e há um momento em que nos tornamos fortes novamente para amar, para viver, para voltar a sorrir e buscar novas coisas, novos projetos, novas relações, novos sonhos.
Diferente do luto é o que o Freud denominou melancolia, algo bastante próximo do que hoje conhecemos como depressão. No estado de melancolia, o sentimento da perda é tão grande e vivido com tanta intensidade que em vez de simplesmente sentir a dor daquela perda e perder o interesse pelo mundo, como vemos no luto profundo, o ser se volta contra seu próprio ego, aniquilando-o, machucando-o, retirando dele qualquer sentimento de valor e de felicidade. Toda satisfação consiste num sentimento sádico de viver profundamente aquele sofrimento. O melancólico idolatra a sua própria dor, que se torna o seu novo objeto de amor, para o qual dirige toda sua libido. Como não lembrar do filme icônico de Lars Von Trier, Melancholia (2011)? No filme, a personagem de Kirsten Dunst, Justine, depois de ver seu casamento fracassar no dia da própria cerimônia, se entrega a uma profunda depressão, deixando de se alimentar e de viver uma vida normal. É Claire, sua irmã, quem a irá ajudar, levando-a para morar em sua casa, uma luxuosa mansão, ao lado de seu filho e marido. A depressão/melancolia de Justine coincide com um elemento fantástico, na narrativa cinematográfica de Lars Von Trier: um gigantesco e desconhecido planeta azulado, chamado pelos cientistas de Melancolia, passará próximo da Terra e dos outros planetas do sistema solar, deixando Claire, que até então vivia uma vida perfeita e abastada, completamente paranoica e assustada. O planeta Melancolia é, de modo muito claro, uma alegoria da depressão que toma conta do mundo no século XXI. No fim do filme, o fim da Terra parece inevitável, é como se a destruição da humanidade não mais estivesse no exterior, em invasões alienígenas ou em guerras nucleares, mas dentre de nós mesmos, no nosso próprio ego dilacerado e corrompido pela melancolia, pela depressão. Freud ressalta que, em muitos casos, o melancólico, ou o depressivo, como queiramos chamá-lo, na sua sede sádica e perversa por destruir a si próprio, acaba por cometer suicídio. Por isso, é tão importante que levemos a sério esse assunto, que o discutamos nas mais variadas esferas da sociedade, procurando formas de prevenção e de acolhimento para todos que vivenciam essa situação.
Nesse momento, talvez vocês estejam a se perguntar: mas afinal de contas o que ele quer dizer com tudo isso? Bom, a verdade é que durante todo o ano passado me vi mergulhado num profundo estado de luto – luto profundo, talvez. E isso me fez perder a vontade de escrever, que é o que mais gosto de fazer desde a minha infância. Simplesmente perdi a vontade e o interesse em ler, escrever e tentar, de alguma maneira, como faço neste exato momento, traduzir o que penso e sinto. Mas, como defende o pai da psicanálise, mesmo o luto profundo chega ao seu fim. Aos poucos, aprendemos a conviver com a tristeza, com a dor, com aquela perda que tanto nos machucava. E então voltamos à superfície, a respirar ar limpo e puro novamente. Voltam as palavras e os versos, como se fossem pássaros migratórios que, depois de um ano, retornam a um velho lugar conhecido.
Durante este tempo de silêncio e reclusão, não estive totalmente só. Se não pude escrever, ao menos pude assistir muitos filmes e séries e, acreditem, isso ajudou muito. Gosto, sempre, de relacionar o que escrevo aqui com outras coisas – geralmente filmes assistidos recentemente ou algum livro que acabei de descobrir. Nesse caso, gostaria de falar um pouco sobre uma série televisiva que me encantou e que me ajudou muito a voltar a ler e a escrever. Trata-se da série catalã Merlí, disponível no serviço de streaming da Netflix. De modo resumido, Merlí conta a história de um inusitado professor de filosofia, que leciona numa escola pública de Barcelona e que, através do que dizem os mais variados filósofos e filosofas, procura incentivar seus alunos a refletirem sobre a vida e o mundo onde vivem. Noutras palavras, Merlí convida seus alunos/discípulos, carinhosamente chamados de peripatéticos[1], a pensarem criticamente. De modo didático e muito divertido, a série tenta mostrar como a filosofia pode ser aplicada nas situações mais simples da vida, ajudando-nos a seguir um velho conselho de Sócrates: Conhece-te a ti mesmo. Graças às aulas de Merlí, o meu interesse pela escrita, pela literatura, pelas artes e sobretudo pela arte de pensar despertou do seu estado letárgico. E, ainda que de modo sucinto, tive contato com o pensamento de filósofos como Platão, Aristóteles, Epicuro, Hipárquia, Santo Agostinho, Descartes, Schopenhauer, Nietzsche, Engels, Marx, Hegel, Kant, Thoreau, Albert Camus, Judith Butler e tantos outros. É claro que a série é apenas um convite para que se conheça a obra desses grandes homens e mulheres, que ao longo da história tentaram fazer a humanidade pensar e refletir sobre si mesma e sobre seus atos.
Fica, então, o convite para que assistam a série Merlí e busquem um pouquinho mais sobre o que escreveram esses filósofos e filósofas. Que os nossos lutos e melancolias não sufoquem, de todo, nossa vontade de viver, de questionar, de pensar, de lutar por um mundo melhor e acreditar que o pensamento, que a educação, podem, sim, libertar muitas mentes da ignorância e da alienação. De modo muito mais profundo do que qualquer literatura burlesca de autoajuda, a filosofia nos ajuda a lidar com nossas perdas, com a morte, com aquilo que é irrecuperável e incontrolável em nossas vidas, ou seja, nos coloca diante da nossa fragilidade. Como diria Merlí: “A vida é uma festa, na qual encontras muitas pessoas, novos convidados estão chegando, mas também há outros que, por qualquer motivo, partem antes, todos temos que partir um dia, não se esqueça. O pior de tudo é supor que a festa continua sem nós”[2].
_______________________
[1] A Escola peripatética era um círculo filosófico da Grécia Antiga. Os peripatéticos seguiam os ensinamentos de Aristóteles, seu fundador. Fundada em c.336 a.C., quando Aristóteles abriu a primeira escola filosófica no Liceu em Atenas, durou até o século IV. “Peripatético” é a palavra grega para ‘ambulante’ ou ‘itinerante’, que é uma referência à mania dos antigos filósofos de caminhar enquanto pensavam.
[2] Frase retirada do 10º episódio da terceira temporada da série Merlí.
_______________________
Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em literatura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno.