coluna | palavra : alucinógeno
das muitas possibilidades de ser e existir, dos conjuntos tríplices possíveis, é plausível que todos (ou quase) se reúnam nestas três diretrizes que nos mantêm humanos: 1. morte – como a coisa comum a todos –, que precisa ser cativada aos poucos por ser um precioso monumento ao que se constitui como vida. 2. nome – talvez seja algo que se diga para dentro da voz de um corpo, da pele sobre a pele, em sua maturação. 3. tempo – tal qual a carnalidade na curvatura invocada pela tríplice vitalidade, quando não há mais espera para se entregar a terra.
o tríptico morte, nome e tempo – como instâncias que se completam em suas divergências – confabula a metáfora para se dizer a humanidade. quem sabe seja o que no poema se revela como aquilo que densamente permanece, desdobrando-se primordialmente em outras três possibilidades: existência, experiência e extensão. portanto:
[…]
Aprendemos a reconhecer lentamente
As pouquíssimas coisas que perduram.
O que permanentemente se poderia amar, e a
Solidão que teceria os ossos do silêncio.
[…]
três são os eixos pelos quais o discernimento da conservação – nossa existência – se adensa clarividente com o susto: o amor, a solidão, o silêncio. aprendemos, sim, e isso leva tempo. a conjugação desses elementos se dá na irrupção da experiência, onde tudo que não se completa é pleno em sua falta. ser a matéria que falha para o mundo germinar a todo instante. mas nada disso aprendemos fácil. amar é tal qual o mergulho no mar sem propósito para o nado. o fundo se torna cada vez mais real pela desfaçatez do pecado: o silêncio toma seu espaço mediante a estrutura óssea, erigida no descampado da própria mortalidade. daí, a substância que se eleva do berço à brevidade de uma existência – eternizada pelo seu fim – diz a linguagem, a casa da palavra em seu íntimo enlace:
[…]
Mesmo quando não temos
Audição, visão e mobilidade –
A palavra é o interior pulsante.
[…]
compondo a existência, não há materialidade sensitiva que suprima a inevitabilidade infinitiva da palavra. por ser “o interior pulsante”, o molde de seu entorno é uma impossibilidade semântica, ainda que exaustivamente se tente reter o que de infinito há no transitório. a palavra se movimenta para todos os lados, ela é o espaço que tanto emerge de seu íntimo quanto naturaliza a devoção mais que geográfica da temporalidade. a palavra consagra o tempo e é por ele consagrado em sua pulsação. não há sentido, audição, visão, coisa orgânica que restrinja seu ritmo. há travessia, sempre. e suas encruzilhadas são conosco:
[…]
Que difícil atravessar o que
Cabe na áspera paisagem, o
Que no pensamento é receio.
[…]
do auge da experiência vital, tenho todos os meus quarenta e três anos. todos os mais e todos os menos. carrego as minhas idades comigo, os aniversários e seus excessos. os erros, seus retrocessos, a vivência de algo transitivo em sua permanência. o medo é constante. a dificuldade de se atravessar o que desponta no meio, aquilo que é, antes, turbilhão e temor para o que está por vir. o escarpado irregular se prende aos pés para que no fim qualquer caminhada desafie a apreensão do horror. é preciso pensar, tal como a severa brutalidade pertinente ao diálogo e seus desdobramentos:
[…]
O intestino esmurra a dialética
Delgada e porosa das mucosas.
Condiciono crenças – pressagio o
Despertar, no fim, receosa.
[…]
crescendo desde o fundo, a metástase. dizer se tornaria também isso que se alastra pelo organismo da palavra. um sistema falho em suas vocações para o aberto da fala. dialética não pode ser o que opõe, mas o que desdobra trazendo ao presente a interseção entre o que se diria ser passado e o que sinalizaria para o futuro. só há presente no instante em que o tempo é sua própria dialética. o presságio como anúncio. fim é isto que é agora, e continua sendo. nos processos de absorção próprios aos intestinos, a mucosa dá seu testemunho. encharca-se de si na violência entre a metafórica membrana que separa reunindo. o delgado e o poroso deambulam para dentro do imprevisto. ainda o medo potencializa caminhos. a vida cronológica perto de seu fim, se é que fim seja mesmo algo que finde… talvez apresente um modo de continuar a nascividade, no entanto tudo que é tempo e nome fenece:
[…]
Tudo morre no seu nome.
Tudo morre no seu tempo.
[…]
não há eufemismo que dê conta. tudo é tudo mesmo. e morre. estamos no âmbito da extensão. alarga-se para fora o dentro de todas as formas. a matéria orgânica vivente na translucidação hermenêutica de um corpo-além. nome se torna mais que chamamento. é estado de vivência, experiência, um lugar para o qual se designa a epopeia dos dias. nome e tempo se ambiguizam na dimensão do destino porque “tudo morre no seu nome”, porque “tudo morre no seu tempo”. eis o instante, o exato momento em que nome e tempo são o mesmo e recebem a nomenclatura tríptica do que simultaneamente se dilui no e se configura como humano: existência, experiência e extensão.
P.S. 1. Tríptico vital, de Mariana Basílio, foi publicado pela Patuá em 2018. é um grande poema que se divide em três momentos: “Da existência”, “Da experiência” e “Da extensão”, os quais, segundo minha leitura, concentram-se em estágios de desenvolvimento. destes, retirei alguns trechos, os quais serviram de norteamento para minha alucinógena possessão poemática e apareceram aqui nos parágrafos de citação. em ordem de aparição, são estes: “Um mundo a ser descoberto”, “Dos primeiros meses ao primeiro ano”, “Quatro décadas e três anos de vida”, “Os glóbulos circulam oculares”, “Sempre presente é o que já passou”.
uma leitura, se assim posso dizer, não se extingue nas letras que a manifestam como obra. a poeta diz no fim do livro, no colofão: “Escrever o inominável, mesmo quando não há como rompê-lo”, e nisso compreendo o duplo movimento deste percurso poético: aquilo que vive só vive porque morre. parece óbvio, talvez seja mesmo. mas esse circuito que nos toma é também um mistério, um enigma, uma retroalimentação, uma infinda recolocação do insondável. por isso nos impulsiona a querer tomar posse dessa questão, ainda que esse domínio não seja o de tomar para si uma propriedade, e sim o de se recolocar o inevitável gesto da germinação pela poesia (em seu sentido mais originário, o de poíesis, criação). obra é aquilo que opera, que nos torna cada vez mais erráticos no que teimamos em ser: humanos.
P.S. 2. e tenho que dizer, no entanto, que este texto não é uma resenha, é apenas uma alucinação a partir da devoração tríptico-vitalícia proposta pela Mariana. tomem posse.