Coluna | ESCRITORXS DE QUINTA
O homem tinha andado à procura de galhos e gravetos e escolhido cada um dos troncos. Descansou duas ou três vezes na sombra para tomar fôlego — secou meia garrafa d’água —, então, parou.
Tinha recolhido mais lenha do que era capaz de carregar.
Abandonou o trapo de corda no chão para estudar com assombro o absurdo de galhos e gravetos.
Era distraído, mas nem tanto.
Olhou para os lados, desconfiado.
Não havia nada além do respiro do vento resvalando nas árvores ao redor.
Esconder parte da lenha e buscar no dia seguinte era uma boa ideia, não fossem as pernas já tão fracas. Se há dois anos ele cumpria a tarefa em pouco menos de três horas, agora custavam metade de um dia suas idas àquela mata. Era tempo demais em uma única coisa. E o sol escorria cada vez mais veloz sobre sua cabeça.
“Onde que eu tava com a cabeça?”, diz o homem, esperando alguma resposta. O cachorro para um tempo, olhando, mas não se manifesta.
Diante da sede e da fome, havia aquele resto d’água e três goiabas encontradas no caminho e enfiadas no embornal. Abriu a garrafa e bebeu três goles moderados. A jornada de volta seria longa e ainda não sabia o que fazer com aquela lenha toda. Mas antes mesmo de girar a tampa por completo, ele tornou a abrir e beber — e bebeu até que sobrasse apenas um restolho.
Despejou na mão, recolhida em forma de concha, para que o animal lambesse.
Pegou a goiaba, a mais macia, e deu uma lasca ao cachorro. E o cachorro cheirou e lambeu e cheirou outra vez até que parou de orelha em pé, rabo ligado, apenas olhando. O homem mordeu a goiaba. Era sempre assim que fazia. Mas desta vez — quem sabe a fome do bicho fosse pouca, ou por outro motivo que escapa à compreensão do homem, como escapava a maioria das coisas — o cachorro não se comoveu.
O homem pigarreou e continuou mastigando enquanto preparava um cigarro. Certas coisas não têm modo de ser de outro jeito. É isso.
Quando jogou o feixe nas costas e seguiu seu caminho, metade da lenha ficou amontoada no abandono daquele descampado. Ele não olhou para trás.
Mancava da perna direita, o homem. Ia avançando ao centro da estrada. A cada passada os chinelos soltavam um estalo, e o feixe de lenha escorregava das costas, mediante a ineficiência da perna desgraçada. Parava, dava um soco no feixe. E o feixe assentava outra vez.
A despeito da lentidão do homem, o cachorro ia à frente. Um batedor à procura de indícios, fuçando em moitas de capim ressecado, rastreando buracos vazios sem vida. Falta pouco. Logo é noite. Aquele vento cortando o ar, o homem bem sabia, cheirava à chuva.
***
Ao chegar na casa do seu tio, André avistou um policial de frente à porta. O policial não se virou. As costas da farda tinham três círculos escuros, enquanto tentava abrir a porta com uma chave de fenda de cabo amarelo. Duas mulheres acompanhavam tudo de perto. Uma disse para a outra que quase toda noite ouvia o homem cantar.
A ponta da chave de fenda parecia comportar a extensão dos olhos do policial, porque sua expressão mudava, mediante os movimentos no vão da porta. Mas era apenas esperança e teimosia. A porta permanecia lacrada, tal e qual.
“Pode arrombar”, disse André.
A porta bateu no canto da parede e arrastou a corrente num estalo tilintando no chão.
O cheiro de mofo obrigou o policial a cobrir o rosto.
Não havia cômodos. Um fogão feito de tijolos repousava no canto e uma mancha escura formava um arco na parede caiada. No chão, próximo ao fogão, duas panelas pretas, uma caneca de plástico vermelho, dois litros descartáveis com água, um deles quase vazio. No outro extremo, um colchonete fino estirado sobre as tábuas, apoiadas por pedras. E aquilo que parecia ser um cobertor, fino como papel, enrolado num canto.
O policial saiu porta afora.
Próximo da cama havia alguma coisa enrolada em um pano que talvez um dia tivesse sido branco. André se aproximou. Mesmo coberto de pó, sem a maioria das cordas, com riscos de todo tipo e adesivos de santos pela metade, o violão tinha uma espécie de aura que destoava de todo o resto.
André havia encontrado o tio num bar, alguns meses atrás. Foi por acaso. Era aniversário de um colega de trabalho de André. O tio chegou mancando, bêbado, com uma garrafa de seiscentos descartável. Pediu para a mulher vender, que depois ele pagava. Mas a mulher sabia que ele não pagava. “Pode marcar na minha conta”, disse André. A mulher encheu a garrafinha e o tio ficou satisfeito. André perguntou se ele ainda tocava. E sim, tocava — o violão é a minha vida — e arreganhou os dentes podres. “Mas o violão tá faltando corda”, o tio disse. André bateu a mão no ombro do tio. “Qualquer dia eu vou lá e levo as cordas pro senhor, daí a gente toca umas modas.” O tio sorriu. “Vou limpar o violão. Te espero lá.”
André pegou o violão e tentou limpar como pôde. Não sabia lidar com essas coisas. O braço empenado, uma pequena mancha de mofo na borda inferior da caixa, sem falar das cordas. Sabia que umas eram finas e outras mais grossas. Deve ser simples de resolver.
Aquelas duas senhoras tinham chegado à porta. Mesmo sem olhar para trás, André podia sentir os olhos delas caindo sobre sua nuca.
“Agora aparece”, ela disse.
Ele olhou para ela e moveu os lábios, mas aquilo não era um sorriso. O policial se aproximou e pediu para as mulheres se afastarem.
André saiu com o violão na mão e a claridade incomodou. Só aí deu conta da escuridão em que estivera metido.
Adriana assistia a TV. Quando viu aquele violão na mão dele, perguntou como tinha sido.
“Tudo certo”, ele disse.
Ela havia separado o prato dele, estava no forno, era só esquentar. Ele não respondeu.
No dia seguinte, saiu cedo. Nunca tinha entrado numa loja daquelas. Ficou admirado com a quantidade de instrumentos. Mas logo se irritou. Qual tipo ele queria, para que tipo de violão, se de aço ou de náilon, quantas polegadas?
Tanto faz. Bobagens. Aborrecimentos sem importância.
Em casa, não soube muito bem como fazer. Adriana disse que ele devia pedir a alguém que soubesse. Deixar de teimosia. E mesmo quando ela avisou que ia arrebentar, ele seguiu apertando, dizendo para ela não encher, deixá-lo em paz.
“É, isso mesmo, custa me deixar em paz?”
“Tudo bem”, ela disse.
A tarraxa rangia e ele continuava apertando. E ele apertou mais e mais, até que a tarraxa se partiu e a corda chicoteou e rasgou o dedo. O corte era um risquinho branco, num tom bem mais claro que a pele. Mas logo uma gota de sangue minou, e não parou de minar e começou a escorrer até cair na mão.
Ele pegou o maldito violão pelo braço e bateu contra as paredes e bateu e bateu e continuou batendo à medida que Adriana se encolhia sob o batente da sala, chorando, ouvindo os estalos da madeira se partindo, a respiração ofegante — lascas e cacos que voavam e caíam no piso.
Terminou segurando um toco disforme. E aí ele sentia apenas cansaço. Soltou o corpo no sofá como se nunca mais fosse levantar.
O sangue escorria da mão e pingava no piso. Escorria para depois ressecar, quando o sol se espreitasse pela janela, despejando calor.
***
O barulho da chuva lavando o cascalho e trovões se arrastando com vigor no céu eram as únicas coisas que se ouviam. À beira da estrada, a enxurrada ia empurrando tocos e pedras, acumulando-se num fosso, cercado por um monte de terra.
A escuridão havia se instalado e não restava alternativa ao cachorro, tremendo de frio, senão essa ansiedade instintiva de permanecer encolhido junto ao corpo e aos galhos, como se tentasse, apesar de tudo, adormecer também. O choro miúdo do bicho era abafado pela chuva que descia ruidosamente do céu, iluminado, de tempos em tempos, por relâmpagos, feito fibras nervosas incandescentes.
O barro escorria do rosto prensado contra o cascalho, acumulava-se na perna dobrada, sujava a camisa e a calça.
A enxurrada à beira da estrada logo era um poço, encardido, com folhas e gravetos flutuando na superfície, prestes a arrebentar.
Dois faróis despontaram ao pé do mirante. Opacos, avançando com lentidão, quase encobertos pela cortina d’água. Quem os avistasse de longe, vendo o ziguezague das duas pequenas bolas de luz, logo intuiria a dificuldade do motorista em guiar sobre aquela pasta viscosa.
Quando os faróis atingiram a reta da estrada onde o corpo se encontrava, o cachorro se ergueu, empinou as orelhas. Primeiro parou de rabo ereto, olhando aquilo que se aproximava. Depois, avançou até os pés do corpo, assumindo uma postura firme, a chuva castigando o lombo.
E latiu.
Embora o motorista conhecesse a estrada e soubesse que parar o carro naquelas condições fosse loucura, ele recuou o pé do acelerador. A enxurrada empoçada estourou e desceu empurrando tocos e pedras, folhas e gravetos, indo na direção do cachorro, na direção daquele homem desmaiado na estrada.
Abriu a porta do fusca com um golpe seco. Cravou os pés no barro e correu, desajeitado, na direção do corpo. O manto d’água e a lama cobriram seus sapatos e logo escalaram metade da canela, enquanto o homem desmaiado era vagarosamente arrastado. O cachorro aproximava-se do corpo e latia quando o motorista tentava segurar o homem, tornava a se afastar por conta da correnteza.
O motorista agarrou a cabeça do homem tentando evitar que se afogasse. Com a outra mão, pegou um dos braços e foi arrastando como pôde. Mas assim não daria certo, escapava das mãos. O cachorro latia, chorava, latia — cada vez mais longe. Com muito custo, o motorista conseguiu colocar o homem sentado. Água, lama, galhos batiam na parte baixa das costas. Enfiou uma perna no meio das pernas do homem, passou a outra perna para trás, protegendo o corpo da correnteza, para então enfiar seus braços debaixo dos braços do homem e arrastá-lo até o carro. Mas não seria tão fácil. Escorregou, caiu de costas no chão. A água escorria nos olhos e era difícil enxergar, apesar dos faróis caindo sobre seus ombros.
Ele se encostou ao carro, tentou erguer o homem. Mas quando conseguia colocá-lo de pé, era incapaz de mantê-lo nessa posição. Como se não houvesse ossos por dentro das pernas. Tentou chamá-lo, se acordasse seria mais fácil.
Precisava contornar o carro, ainda. Esqueceu-se disso na hora em que começou a arrastá-lo. Ia pegar um pouco de correnteza. Por um momento olhou através da cortina d’água que descia do céu, olhou de um lado ao outro da estrada, procurando algum sinal, na esperança de que outro carro apontasse na estrada. Inútil. Não havia ninguém na estrada.
Pegou o homem e iniciou o movimento de contornar o carro. Avançando com cuidado, cravava o pé firme na lama. Prendia os calcanhares no chão na tentativa de evitar escorregões que poderiam colocá-lo na estaca zero.
Próximo de chegar ao ponto que precisava — quando, então, percebeu que ainda teria de abrir a porta —, ouviu um latido abafado e distante. Tinha se esquecido do cachorro. Parou com as costas apoiadas no carro, respirava ofegante, tentando determinar a direção do latido. Mas só ouvia a água rebatendo na lataria do carro, o motor funcionando em marcha lenta, o cascalho girando na enxurrada aos seus pés, um trovão crepitando e desaparecendo pelo vale.
Embora quisesse, não podia fazer nada pelo animal. Precisava ajudar o homem.
Abrir a porta foi mais fácil do que esperava. Colocar o corpo do homem lá dentro que era o problema. O sujeito estava mole feito borracha. Conseguia sentá-lo, mas o homem, talvez por excesso de lama grudada ao corpo, logo escorregava, os pés iam para baixo do painel, a cabeça debandava para o banco do motorista. Olhou para o banco de trás, cheio de sacos de ração. Não fossem aqueles malditos sacos, poderia colocar o homem deitado lá atrás. Mas pensar isso não adiantava nada, pensou em seguida, e ajeitou o homem no banco mais uma vez, e mais uma vez a cabeça do homem escorregou rumo ao banco do motorista e o câmbio bateu contra a barriga do homem.
Àquela altura desejava apenas sentar-se no carro e tocar para a cidade.
Tirou o corpo do homem de cima do câmbio e o colocou deitado, atravessado nos dois bancos. Quando chegasse do outro lado, ajeitaria da melhor forma possível. Fechou a porta e começou a contornar o carro, parou na traseira, olhando para o breu ensopado de onde havia surgido o último latido do cachorro, enxugou os olhos nos ombros, aguçou os ouvidos, virou a cabeça de lado, mas não conseguia ouvir nada além dos ruídos inerentes à tempestade.
Empurrou a cabeça do homem, sentou-se, bateu a porta. Ajeitou o homem mais ou menos e começou puxar o ar profundamente, soltando um sopro ruidoso ao final. Era o cansaço. Aquele homem poderia ser ele. Poderia ser qualquer um. Pegou a flanela sobre o painel e enxugou o rosto, com força, fazendo o pano correr de orelha a orelha, da nuca ao pescoço. Então percebeu como suas mãos estavam cheias de lama. As unhas sujas. Se não tivesse passado na estrada, o que seria desse homem? Passou a flanela na mão, com força, como se tentasse expulsar alguma coisa além da sujeira. E havia apenas o ruído abafado da água batendo na lataria e no vidro.
Embora estivesse ensopado, podia sentir o suor escorrendo em sua pele, sob a camisa e as calças.
Pegou a flanela e limpou o rosto do homem com o mesmo cuidado que havia limpado o seu. Quando chegou aos braços, o pano era inofensivo. Braços e pano estavam sujos em igual proporção. Espalhava a lama, feito um creme hidratante, de maneira uniforme. Poderia tirar a camisa, mas era perda de tempo. Não havia mais nada a ser feito.
Engatou a marcha, acelerou, mas não avançou muito na estrada. No primeiro ziguezague o homem caiu no seu colo. E só aí, a essa altura dos fatos, quando o cansaço tomava conta de seu corpo, e suas pernas doíam ao afundar o pé na embreagem, ao mesmo tempo que em alguma parte obscura e não consciente, ou até instintiva, desejasse apenas se livrar dessa situação incômoda, quando pegou com uma das mãos o pescoço do homem, desconfiou que aquele homem não estivesse apenas desmaiado. Mas, talvez, pelo esforço excessivo, refutou a ideia de imediato. E implantou a ideia de que era necessário chegar o mais rápido possível à cidade.
Acelerou novamente e o carro subiu deslizando, os pneus jogando lascas de lama para trás. E enquanto os faróis se afastavam dali, mergulhando na escuridão, a enxurrada diminuía o fluxo, diminuía até se tornar um manto encardido que vazava sem vigor. E nos próximos dias, apenas as marcas encravadas e esculpidas no barro, ressecado e endurecido pelo calor do sol, que rapidamente chuparia toda a umidade.
***
André iria se encontrar com o menino no campinho ao fim da rua. Os lotes vagos eram cada vez maiores e a distância entre as casas se alargava à medida que avançava. Não havia calçamento, o que potencializava o barulho da caminhada. E talvez fosse apenas isso: o barulho crocante do tênis indo e voltando no cascalho, remetendo às tantas ocasiões que descera por aquela mesma rua, há uns vinte anos, exatamente no rumo daquele campinho. Os hematomas sob a faixa resistiriam por algum tempo, mas a mão esquerda, a mais atingida, não doía desde ontem. Tinha almoçado com a mulher ainda há pouco, juntos à mesa, como ela fazia questão, mesmo quando as coisas não iam muito bem, como agora.
Quando descia com um dos amigos, sempre imitavam com a boca aquele ruído crocante. E talvez fosse mesmo apenas isso: o barulho crocante do tênis indo e voltando no cascalho.
Era estranho que aquela região da cidade tivesse permanecido praticamente intocável durante esses anos todos. As casas ainda eram as mesmas, com raras exceções. Uma modesta residência de tijolos à vista, erguida aqui ou ali, com janelas de aço franzino e sem tinta.
De onde estava já podia ver o campinho. As figuras miúdas dos meninos correndo enquanto a bola subia e descia. Era possível perceber a grande inclinação do terreno. O gol do lado da vala era bem mais baixo que o gol que dava para a rua. Uma adversidade ao time que estivesse na parte baixa. Tinham que subir uma pequena ladeira num contra-ataque.
O menino tinha encontrado o cachorro há três dias, vagando por esses lados, faminto, sujo. E como a história havia se espalhado pela cidade, a mãe do menino disse que devia entregar o cachorro ao sobrinho do homem.
André aproximou-se da cerca atrás do gol. E logo avistou o cachorro pulando e abanando o rabo, enquanto o menino, à margem do campo, girava o litro descartável de um lado a outro, com os pés. Não houve dúvida. André soltou um assovio e depois gritou: “Caneta!”. O menino interrompeu a brincadeira na mesma medida em que o sorriso abandonava seu rosto. O cachorro se virou, ergueu as orelhas e parou com o rabo ereto, como se não tivesse certeza, como que diante de uma miragem. Os moleques no campinho interromperam o jogo e a maioria ficou parada onde estava, comentando, olhando para André, dependurado na cerca. Uma minoria mais curiosa veio caminhando devagar na direção deles.
“Caneta!”, o segundo grito espantou as dúvidas do animal. Foi o bastante para que disparasse, atravessando o campinho e desviando-se dos meninos, numa velocidade impressionante. O menino catou o litro descartável e começou a caminhar devagar, batendo o litro na perna.
“Esse campinho ainda tá no jeito, hein?”, disse André.
“É”, disse o menino.
“No meu tempo, a gente dava uns pegas da pesada por aqui. Putz… era só jogão. Ninguém gostava de perder.”
“Hum-hum.”
“O Turuna começou aqui, e olha como o Turuna tá hoje.”
O cachorro estava de fora da cerca, no meio das pernas de André.
“O Turuna é o terceiro goleiro do América. Meu pai tem uma camisa dele”, disse um dos meninos. “É novinha a camisa.”
Os outros moleques debandaram a falar, explicando que o Turuna tinha jogado contra o Cruzeiro, metade do segundo tempo, uma vez. Outros discordaram, dizendo que na verdade tinha sido contra o Atlético, e começou uma discussão.
“Ei! Deixa isso pra lá, galerinha. O importante é que o homem jogou aqui, no mesmo chão que vocês”, disse André, “e isso é pra vocês verem que todos aqui têm potencial pra conseguir algo igual o Turuna conseguiu.”
Os garotos no meio do campinho começaram a se aproximar. Apenas três ficaram sentados, conversando entre si, como se aquilo que acontecia perto da cerca não tivesse importância.
“Caneta, puxa vida”, disse, “esse cachorro é ninja, né não?”
O menino não disse nada. Outro disse que nem mesmo um pitbull teria sobrevivido a alguma coisa assim.
“Quando eu achei ele”, disse o menino, num tom de voz baixo, “tava tudo sujo, tava machucado e parado assim triste, não latia, não, não latia, ficava assim parado, não latia.”
André pegou o Caneta no colo.
“Herdou essa raça do dono dele, meu tio era raçudo assim também.”
“Ele ainda tocava violão”, disse o menino.
O sol das cinco horas ainda estava forte no céu. Logo adiante, os bambuzais dançavam no ritmo do vento e foi para lá que André olhou por um momento.
“Ou!”, gritou um dos meninos lá no campinho, “num vai jogar mais não?”
Isso foi o suficiente para debandarem de volta para o campo. Ficaram só os dois.
“Eu até poderia deixar ele com você, sabe?”, disse, “mas, veja bem, foi a única coisa que sobrou do meu tio. Não sei se você entende.”
O menino não disse nada.
“A gente não pode ter tudo.” Colocou o Caneta no chão. “Nada é fácil.”
Caneta rodeava as pernas de André.
“Eu, na tua idade, nunca tive um cachorro. Meu pai não deixava. Você tem sorte, tem muita sorte.”
A bola voltou a rolar no campinho. Os moleques corriam e gritavam. E esses gritos preenchiam o silêncio entre os dois à beira da cerca.
“Esse campinho é um espetáculo, não é mesmo?”
O menino não disse nada, batia o litro descartável na perna. O cachorro parado na cerca. André ia se afastando. E apenas isso: o barulho crocante do tênis indo e voltando no cascalho.
“Vai levar não?”, gritou o menino.
“Qual é teu nome?”
“Lazinho.”
“De vez em quando você leva o Caneta lá em casa pra eu ver, tá certo?”
André ainda parou um tempo. Olhando o garoto se afastar. Olhando as luzes dos primeiros postes se acenderem em espasmos. Homens de embornais no ombro e chapéu na cabeça saltando dos caminhões e descendo aquela rua de cascalho. Desciam em bandos, rindo, para depois desaparecer — cada um por si — no giro de um portão.
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Marcos Vinícius Almeida, escritor e jornalista, é autor do volume de contos Paisagem interior (Penalux, 2017).