|SIBILA
Por Renata de Castro
Há cerca de quatro anos, mostrei um poema de minha autoria a alguns amigos. Um dos homens do grupo disse que, embora tivesse gostado do poema, aquele era um texto escrito para mulheres. Eu automaticamente comecei a refletir o que haveria naquele poema que o tornava particular. O que significa ‘texto para mulheres’? O fato de eu ser mulher faz com que aquilo que eu escrevo tenha sentido apenas para outras mulheres? Ou interessa exclusivamente às mulheres? Evidentemente, o pressuposto de que existe literatura para mulheres e literatura para homens tem como base um conceito bem específico de literatura. Há mais de um, é bem verdade, e, ao que parece, eu e meu amigo partimos de conceitos diferentes.
A questão da escrita de mulheres vem sendo discutida há tempos por homens e mulheres. Existiria ou não uma escrita marcadamente feminina? Entre tantas escritoras que já falaram sobre o assunto, trago duas: a britânica Virginia Woolf e a portuguesa Maria Teresa Horta.
Ao longo da carreira, Virginia Woolf tratou desse tema em artigos, ensaios e palestras. Não é um tema novo. Em 1905, W. L. Courtney escreveu o livro A nota feminina na literatura, em que se propôs a elucidar a natureza da tal nota. O autor afirma que as mulheres raramente são artistas. Por serem apegadas ao detalhe, elas não possuiriam a noção exata da proporção artística. Para ele, as mulheres não sabem criar, são boas apenas em reproduzir, em fazer análise em miniatura e análise psicológica. Apesar de seu posicionamento, Courtney considerou artistas duas das oito escritoras analisadas por ele e outras duas como tendo uma força masculina. Entretanto, o fato de ter cada vez mais mulheres escrevendo, para ele, significava o fim do romance como obra de arte, visto que mulheres escreveriam apenas para mulheres.
Ao afirmar que mulheres escrevem apenas para mulheres e, ao mesmo tempo, reconhecer a qualidade do trabalho de algumas e uma tal força masculina em outras, o que Courtney parece nos dizer é que, para ele, existem dois tipos de produção. Uma seria exclusivamente direcionada a leitoras e a outra, a um público misto. Mas também fica claro que as mulheres que escrevem para um público misto têm o que ele chamou de força masculina.
Virginia Woolf rebate Courtney citando Safo e Jane Austen como exemplos de escritoras que sabem combinar perfeitamente o detalhe com a proporção artística. Com relação ao fato de o autor atribuir às escritoras o fim do romance como obra de arte, Woolf ressalta que, naquele momento, há mais de um século, ainda não era possível valorar o que vinha sendo produzido. Ela afirma que, de qualquer maneira, era razoável que houvesse cada vez mais leitoras interessadas nos livros produzidos por outras mulheres.
Como é indicado por Woolf, a produção feminina parece que não era tão consumida pelas mulheres. É razoável perguntarmo-nos se ainda hoje há esse cenário. Quantas escritoras canônicas estudamos durante os anos escolares? É possível contá-las nos dedos. Passamos a maior parte do tempo lendo escritores. Representatividade no campo da literatura também é necessário, visto que ainda há pessoas que consideram a escrita de mulheres uma escrita particular em contraposição à escrita universal, leia-se a escrita de homens.
Diferentemente de Courtney, Brimley Johnson, em Mulheres romancistas, de 1918, não defende a ideia de que mulheres copiam e imitam. Segundo ele, existe uma escrita feminina que se caracteriza pelo fato de as mulheres se aterem menos aos ideais artísticos e mais à vida. De acordo com o autor, mesmo quando a mulher é erudita, ela tem uma escrita mais emotiva e tem menos senso de humor que os homens.
Sobre o livro Mulheres romancistas, Virginia Woolf observa que críticas de obras feitas com base no gênero do escritor apenas confirmam preconceitos derivados do gênero, tanto masculino quanto feminino. Ela afirma que existiram escritoras tentando serem vistas como homens em suas produções e que tal atitude é condenável tanto quanto a tentativa contrária de serem vistas como mulheres. Segundo Woolf, as grandes obras de mulheres foram possíveis porque provavelmente as autoras não estavam pensando se eram ou não mulheres. A escritora sustenta este argumento não só nesses artigos em que comenta os textos de Courtney e Brimley, como em seu famoso ensaio de 1928 Um teto todo seu. Nele ela valoriza escritores por ela classificados como assexuados e andrógenos.
Quanto a outra afirmação de Brimley da escrita da mulher ser feminina, Woolf concorda, mas questiona o significado de ‘feminino’. Ou seja, ao mesmo tempo em que ela afirma que as grandes obras de escritoras não devem ter sido perpassadas pela questão de serem ou não mulheres, a autora afirma ser sim a escrita de uma mulher sempre uma escrita feminina. Mas o que seria o feminino para que fosse possível estabelecer tais características na escrita dessas mulheres? Sua reflexão passa por questões econômicas, sociais e morais e tem uma relação direta com o fato de a mulher, até sua época, não gozar de liberdade intelectual.
Para Maria Teresa Horta, a escrita feminina existe e, apesar de ser afetada por questões também levantadas por Woolf, define-se por uma busca do corpo da mãe. Segundo ela, assim é a escrita de Virginia Woolf, feminina. Ambas alegam haver escritas feminina e masculina e que não necessariamente estas tenham correspondência com o gênero de quem as produz. Para ambas, por exemplo, Proust tinha uma escrita feminina. Porém para Woolf, essa característica não é positiva, assim como não seria uma escrita masculina. Ela defende a genialidade de escritores andrógenos, afirmando que “sem a mistura dos gêneros o intelecto parece predominar, e as outras faculdades da mente se endurecem e se tornam estéreis.”[1] Já para Horta, o fato de ser feminina ou masculina a escrita de alguém não é critério para qualificar uma obra literária.
Tanto Woolf quanto Horta afirmam que a escrita da mulher pode estar marcada pelas condições nas quais ela está inserida. Esse contexto seria então determinante na escolha do tema e da forma. A escritora britânica afirma que homens e mulheres não são iguais, a começar pelas experiências de vida e, consequentemente, na perspectiva em relação a um tema. Isto vai influenciar diretamente a escrita de cada um “na escolha, no enredo, nos episódios, na seleção, no método e no estilo”[2]. Também Maria Tereza Horta corrobora com a ideia de diferença entre os gêneros e endossa o argumento de Courtney, em certa medida, uma vez que considera que as mulheres têm uma atenção maior aos pormenores, segundo ela, seja em consequência da genética ou da educação.
Arnold Bennett, romancista e autor do livro de ensaios intitulado Nossas mulheres: capítulos sobre a discórdia entre os sexos, de 1920, defendeu a ideia de que as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens. Desmond MacCarthy publicou posteriormente uma resenha do livro em que afirmava ser Bennett um feminista convicto por hesitar em afirmar que as mulheres seriam intelectualmente inferiores, sobretudo em capacidade criativa. Ele ainda afirmou categoricamente, assim como os outros autores, que, mesmo instruídas e livres, as mulheres continuam inferiores. Para justificar seu posicionamento, Bennett diz que até aquele momento, há cem anos, não havia nenhuma mulher que tivesse se destacado na literatura, na pintura ou escultura, na música, na ciência e na filosofia. E MacCarthy, que o resenha, reafirma que apenas uma pequena porcentagem de mulheres teria a inteligência de um homem inteligente. Segundo ele, é por isso que as mulheres seriam dominadas pelos homens.
Virginia contesta Bennett e MacCarthy afirmando que havia mulheres notáveis destacando-se cada vez mais desde o século XVII e cita vários nomes femininos. A autora opõe-se à ideia de desigualdade de intelecto entre homens e mulheres e insiste que as mulheres são afetadas pela falta de educação e pela falta de liberdade. Virginia Woolf ressalta que, além da educação, as mulheres precisam de liberdade de experiências, liberdade para divergir dos homens, liberdade para pensar, inventar, imaginar e criar sem medo do ridículo ou da condescendência.
Basicamente, toda argumentação de Woolf contra as colocações dos quatro escritores fundamenta-se na ideia de que, para que haja igualdade de condições de produção intelectual, as mulheres precisam de instrução e liberdade. Esta última conquistada por meio de independência material, principal argumento do ensaio Um teto todo seu.
Os escritores citados acima, contestados por Virginia Woolf, fizeram um julgamento da mulher escritora como se ela ocupasse socialmente a mesma posição que um escritor. De acordo com a autora, a instrução é que permite uma ampliação da inteligência. Woolf acredita que se as escritoras que foram criticadas nos livros citados anteriormente pudessem se dedicar ao estudo dos clássicos, certamente teriam uma visão mais sólida da literatura, o que lhes permitiria passar uma mensagem de forma mais estruturada, moldada num “feitio artístico duradouro”[3]. Ela desafia que alguém seja capaz de citar um artista que não tenha tido instrução.
Além disso, ressalta a questão do contexto, do cenário apropriado para o surgimento de um artista. Ela destaca a importância da tradição, exemplificando com Shakespeare, que pôde existir em função de seus predecessores, por uma tradição de discutir e praticar a arte em liberdade. Woolf questiona se não seria esta a razão pela qual também pôde existir Safo, em Lesbos, já que entre os eólios, as mulheres gozavam de liberdade social, conviviam com os homens – diferentemente do restante da Grécia – e eram altamente educadas.
Todos os pontos levantados por Virginia Woolf para justificar uma diferença na escrita de homens e mulheres passam pela liberdade intelectual. Já para Maria Teresa Horta, a escrita feminina está marcada pelo corpo e pelos ciclos biológicos da mulher, além das questões sociais que a envolve.
A discussão sobre escrita feminina, definida ou contestada por homens ou por mulheres, parece estar longe de acabar. Virginia Woolf é um dos cânones da literatura ocidental e muitos de seus argumentos para justificar uma escrita feminina vêm caindo com o tempo e com as conquistas feministas para uma parcela das escritoras. As questões sociais que envolvem o tema se ampliaram para as experiências do feminino e outras áreas do conhecimento humano foram somadas à reflexão.
Ao que tudo indica, enquanto estivermos as voltas do que pode significar ser uma mulher, estaremos pensando o que significa a escrita feminina. Então volto a meu amigo e revelo-lhes o título do poema: “Ode ao falo”. São tantas vulvas representadas na escrita de homens por séculos, e eu gosto de tantas delas. Nunca antes havia passado pela minha cabeça que eram poemas escritos para homens. Eu julgava que o Belo era tema comum à Poesia.
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[1] WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014, p. 146.
[2] WOOLF, Virgínia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 31.
[3] Ibidem, p. 24.
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Renata de Castro é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.
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Referências:
HORTA, Maria Tereza. A “escrita feminina”. SILVA, Fabio Mario da. Revista Alere, Ano 05, Vol. 06. N.o 06, dez. 2012.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.
_____________. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&PM, 2013.