WALY SALOMÃO E O TEMPO OCO DO REAL – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

para fins de um confinamento em que o tempo parece passar em câmara lenta, a poesia confia a ambiguidade entre ação e repouso ao poema. um paradoxo. talvez. mas é desde um desempenho que marca a tramitação dos versos, sem perspectiva de paragem, que o poema “Vigiando o oco do tempo”, de Waly Salomão, se coloca neste momento tão solenemente esvaziado de gente, de corpos se abraçando.

com o andamento poemático marcado pela aguda observação, dentro da dinâmica de uma voz narrativa e provocadora – que faz curva ao topar com uma tal escavação temporal –, não é à toa que o título do poema está no gerúndio, na forma nominal do verbo para dizer uma ação contínua não terminada. num deslize, desliza a personificação para dentro de uma proposição que, malandramente, encena uma voz oculta, embora presente nessa ausência… coisa do Waly…

Deslizo,
oculto aqui,
vigiando o oco do tempo.

o movimento é incerto. de lá para cá, de cima para baixo, a torto e a direito, permaneço. aqui, presente. tentando desacelerar o devir. numa velocidade impossível de se mensurar o oculto. a estância. o estar. o quando é de tal modo refeito que já não é possível dizer quanto tempo o tempo tem. talvez essa certeza nem seja possível existir mesmo. com a suavidade gatuna dos passos, o velar se dá tal como lugar não encontrado entre a passagem e a paragem. o vigiar continua espaçado e calmo.

Espaço ermo, parado.
Nada acontece. Nada parece acontecer.

a solidão do lugar está nos espaços. nada se move. a gente passa a delirar de nervoso. a gente inventa desculpas para que qualquer coisa seja alguma coisa. a gente se acomete de desvarios frasais… algo como: quando nada acontece, campos são floridos no dorso do susto; a dúvida é sempre a alcunha do porvir; viver em poesia torna o olho a porta de entrada para absurdos; as palavras se tornam mundo e a realidade se condensa no eriçar dos pelos; nuca e peito se entrelaçam em perpétua peregrinação; um poema é escrito aos ventos e lido às cegas; devemos colher desertos e nos unir ao contorno embaçado do que se percebe de retravés; e por aí vai… dizeres estanques e arredios para paráfrases. mas não é assim o tempo todo. chega uma hora que o desatino se dissipa. será?

Mas algo flui, o irremediável
queimando todas as pontes de regresso.
Todo passado está morto;
só vige o que vem, o que surge.
Todas as coisas íntegras dilaceram-se
ou são dilaceradas.

o exercício de mutabilidades se ancora no irreversível regresso aos passados. irremediável talvez seja habitar a eterna fluidez de um caminho sem volta. horizontes são refeitos. e a sagrada liturgia para o que vige e vem se atualiza no que morre. todo caminho é ponte. a encruzilhada é reconhecimento das vias que rasgam os pés de quem assume seu caminho. vigia-se o oco do tempo continuamente. faz-se persona de máscaras no espetáculo dos devires. a vida sai das retinas e compõe um narrador que observa tudo bem atentamente.

A velha senhora viajada,
detentora de recorde de milhagens,
temerosa das vacas do Ganges
depois de ter contemplado um berne
ao microscópio.
Berne que agora corrompe e torna pútrida
qualquer carne verde que ela vê
pois seu olho holografa
o esqueleto subjacente a todo corpo vivo.

toda carne se torna podre depois de um berne malfadado. as vacas e o Ganges serão holografados por um olho infectado. o berne não mais será um parasita. tudo que se olhar será contaminado. ressignificado está o contágio no recorde de milhagens. não há dentro e nem fora: só o oco. costelas encurvam o mundo para o baque entre pele e músculos. o que se vê hoje não é agora. olhos nus são fundamentos para poemas que precisam ser escritos. a letra é ao mesmo tempo voz e perseguição. o poeta é um portal para disfunções. recria-se o poema. recria-se o leitor quando encarna o microscópio; quando se torna o berne, ou as vacas, ou o Ganges. o poeta é um vigilante que atua no oco das palavras. o tempo se consuma na insistência do que falta. o esqueleto é antes do corpo vivo. seu depois. a devoção pelo alimento dos parasitas. a transiência. o intervalo. o que desvia.

Viver em mudança.
O assoalho repleto das peles velhas das cobras
e do pelo felpudo das aranhas-caranguejeiras.
Viver em mudança.
Que a sobre-humana poesia pica e envenena um
homem.

a poesia é o chão onde o tempo se deita em amor com o transitório. o afeto constituído nesse íntimo traz para perto das imagens o sabor do provisório. entre a simetria da mudança, a ecdise e a urticante maciez das aranhas-caranguejeiras dizem o passageiro, a maturação. se navegar é preciso – ante sua referência e polissemia –, mudar é uma condição, um estado de vivência – “viver em”. a poesia é “sobre-humana”, uma assunção. a extrema-unção como sacramento que dá vertigem a quem dela se aproxima. fere. faz do homem um intervalo. poesia como veneno. um deslize do espaço ermo ao irremediável. é agora e além do humano. um paradoxo. o próprio tempo. poesia é oco. está sob vigilância.

p.s. 1. há momentos dentro do vozerio de Waly Salomão que o poema nos confunde. bem, pelo menos, me confunde. o Waly fala alto em seus poemas, parece escritos aos berros. embora neste aqui essa característica não seja tão aparente. aqui o poema é mais pensante, mais metido a besta a trazer numa situação estranhamente simples um belo pretexto para se pensar o tempo e o humano, o quanto se entremeiam e se confundem, o quanto se fundem e se fodem. o tempo é foda. a gente sempre acha que não tem tempo pra nada, talvez por isso a imagem de um tempo oco tenha caído tão bem. uma provocação muito bem colocada… pelo menos, para quem quiser que seja uma colocação. senão, pode ser só uma graça mesmo, algo do sorriso largo do Waly. certamente ele diria esse poema gritando, abanando bem os braços, e rindo no final. ou fechando a cara, porque poesia é coisa séria.

p.s. 2. ah, sim, quase me esqueço. o poema “Vigiando o oco do tempo” pode ser encontrado no livro Poesia total, publicado pela Companhia das Letras, em 2014.