LADY LAZARUS E A RESSURREIÇÃO POÉTICA DE SI – RENATA DE CASTRO

|SIBILA
Por Renata de Castro

Encontrei Sylvia Plath por acaso, há cerca de dez anos, graças à popularização de livros digitais disponibilizados gratuitamente em alguns sites de literatura. Chegou a mim The Bell Jar (A redoma de vidro), que li com grande entrega. Assim como qualquer boa história bem contada, esse romance me fez sofrer as dores de Esther.

Só depois da leitura do livro, tive acesso a algumas informações a respeito da autora. Muitas delas soavam depreciativas. Havia – ou há – algo no ar que insiste que a obra de Sylvia Plath só desperta interesse nos leitores em função de sua história de vida. Eventualmente, o fato de ela ter sido categorizada como uma confessionalista é usado como argumento para desfavorecer sua escrita.

O termo Confessionalismo foi cunhado por Rosenthal em um ensaio de 1959, Poetry as confession. Nele, o crítico trata de um livro de Robert Lowell, Life Studies – como o próprio título sugere, o autor explora sua experiência de vida de modo direto. Plath chegou a fazer um curso de escrita com Lowell, e, assim como outros nomes da literatura norte-americana da época, como Anne Sexton, é colocada como pertencente ao grupo dos confessionalistas.

Apesar de ela ter publicado alguns contos e poemas ainda em vida, suas principais obras, The Bell jar e Ariel (poemas) – por ela organizadas para publicação –, são póstumas, quando o público já tinha conhecimento de parte de sua história de vida. Isso significa que a recepção, sobretudo de Ariel – uma vez que The Bell Jar foi inicialmente publicado sob pseudônimo –, foi mediada por seu suicídio e pela defesa ardorosa de muitas feministas da década de 60.

Entretanto, Sylvia Plath quis ser e foi uma escritora de qualidade, independentemente de sua história de vida. Seus poemas não seriam menores se ela estivesse hoje, de pijama, tomando um chá na varanda de casa em Devon ou Boston. A fim de propor este olhar, trago o poema Lady Lazarus, não tão bem recebido pela crítica, mas frequentemente utilizado para falar da vida pessoal de Sylvia.

 

Lady Lazarus

I have done it again.
One year in every ten
I manage it–

A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot

A paperweight,
My face a featureless, fine
Jew linen.

Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify?–

The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.

Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me

And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.

This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.

What a million filaments.
The peanut-crunching crowd
Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot–
The big strip tease.
Gentlemen, ladies

These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,

Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.

The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut
 

As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.

I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I’ve a call.

It’s easy enough to do it in a cell.
It’s easy enough to do it and stay put.
It’s the theatrical

Comeback in broad day
To the same place, the same face, the   same brute
Amused shout:

‘A miracle!’
That knocks me out.
There is a charge

For the eyeing of my scars, there is a charge
For the hearing of my heart–
It really goes.

And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood

Or a piece of my hair or my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.

I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby

That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.

Ash, ash –
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there–

A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.

Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.

Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.

 

Lady Lazarus já significa a partir do título. É uma clara referência a Lázaro, personagem bíblico ressuscitado por Jesus depois de alguns dias de morto e sepultado. Há uma subversão do personagem, à medida que ele é posto no feminino. Então sabemos que a voz do poema é uma voz feminina e que volta à vida.

A primeira estrofe indica que algo aconteceu novamente pela vontade própria do eu-lírico, que o faz de modo cíclico, a cada dez anos. O acontecimento, suspeito em razão do título e confirmado mais adiante, é a morte.

Nas duas estrofes seguintes, a metáfora ancora-se em um fato que marcou a cultura ocidental, o regime nazista. Perdura ainda hoje a ideia de que os nazistas faziam abajures com as peles dos judeus por eles assassinados. O sujeito poético coloca-se nesse lugar de modo comparativo, ele estaria vivo como um milagre, existindo de uma outra forma após uma morte dolorosa. É uma existência lustrosa, porém inexpressiva.

Há um interlocutor no poema a quem esse eu-lírico questiona com fina ironia – característica bem presente na escrita de Plath – se sua existência, ou “reexistência”, o assusta. É uma imagem cadavérica, mas que ainda não é morte, ainda irá se esvair, mas não no momento do poema.

Na 6ª estrofe, o eu-lírico retoma a imagem inicial de Lázaro e afirma que aquilo que foi destruído de si, na experiência do túmulo, estará integrado a si mesmo, ou seja, não é uma ressurreição sem mácula, há algo na experiência do morrer que permanecerá agregado ao sujeito.

Na 7ª estrofe, o eu-lírico define-se como uma mulher sorridente, de trinta anos de idade e diz ter nove tentativas para morrer assim como os gatos. O sujeito poético vai de uma passagem bíblica a uma passagem histórica e desemboca numa superstição, recorrendo a imagens da cultura ocidental. Reforça que não foi a última tentativa, que ainda haverá outras e situa a que inicia o poema como tendo sido a terceira – o que nos remete ao três, número cabalístico. Novamente a ideia do cíclico, uma tentativa a cada 10 anos, tentativa de número 3 numa margem de 9 possibilidades ao longo da vida.

O eu-lírico retorna à imagem de Lázaro, agora com foco naqueles que assistem ao milagre. Público caracterizado como uma plateia de circo, quer ver um espetáculo, descrito como um desembrulhar. É novamente uma referência clara a Lázaro, que já estava sepultado há alguns dias quando Jesus o ressuscita. Era costume envolver o morto em panos com ervas e unguentos. O sujeito poético metaforiza esta cena como um striptease para o público. Se consideramos que o eu-lírico diz ter sido a terceira tentativa, sabemos que é um sujeito suicida. Os suicidas, quando não tem êxito e são socorridos e hospitalizados, ficam atados à cama, para que não tentem, ainda no hospital, tirar a própria vida mais uma vez. Assim, a partir da imagem de Lázaro, é construída a imagem do suicida ao sair do hospital, um espetáculo para os curiosos que desejam ver quem atentou contra si. No entanto, o eu-lírico afirma ser ainda a mesma mulher. E revela que a primeira vez não foi realmente uma tentativa, foi um acidente.

Já nas 13ª e 14ª estrofes, o sujeito poético afirma ter sido proposital a segunda tentativa de morte. A imagem é construída a partir de uma concha do mar. O eu-lírico fecha-se como a ostra. Sabe-se que a pérola é uma reação de defesa do molusco a um invasor, e o eu-lírico afirma que para o abrirem novamente foi preciso arrancar pérolas grudentas além dos vermes – ainda na imagem de Lázaro. Mais uma vez, sabendo que o sujeito é suicida, é plausível ver nas pérolas a metáfora de comprimidos ingeridos – método conhecido, e quando o suicida é encontrado ainda com vida, são feitos alguns procedimentos para limpar o organismo, como lavagens.

Nas estrofes seguintes, o eu-lírico retoma o espetáculo das tentativas, afirma ser uma arte e a define como infernal, real e teatral. Segundo ele, dirão que ele tem vocação, e ele concorda, uma vez que afirma fazer isso excepcionalmente bem. Sendo uma arte, deduz-se que o eu-lírico define-se também como um artista. E finda a encenação, o eu-lírico retorna à luz e ao rosto que tinha. Enquanto as reações alheias o assustam, por verem nisso um milagre, ele afirma sobre o custo que é ter analisadas suas cicatrizes, seu coração, seu sangue, seu cabelo, um pedaço de roupa ou seu gesto, ou seja, ele todo, desde a composição biológica, ao histórico de vida e ao comportamento.

Na 22ª estrofe ainda, o eu-lírico retoma o nazismo, como elemento repressor e violento e associa-o à medicina. Através do Herr, pronome de tratamento masculino em alemão, ele se refere ao médico em paralelo ao inimigo – iniciados com letras maiúsculas, o que os coloca como representações categóricas – que o analisa como a um objeto, no caso, de ouro, numa referência ao roubo do ouro dos prisioneiros pelos nazistas. É construída então uma cena a partir do ouro derretido pelo opressor: a dos fornos que queimavam os corpos dos judeus. O eu-lírico torna-se cinzas que são revolvidas pelo outro, que pode transformá-lo, ainda dentro da metáfora do nazismo, em qualquer outra coisa, de um sabonete a um dente de ouro. Tudo é reaproveitável. O que nos leva de volta ao início do poema, quando o sujeito poético volta “à vida” como um abajur nazista, o resultado de um processo de dor.

Por fim, nas duas últimas estrofes, o Herr que se referia ao médico e/ou ao inimigo assume novas formas, Deus ou Lúcifer, indistintamente. São quatro referências masculinas representando a opressão do sujeito, sobretudo se lembrarmos que o eu-lírico define-se como uma mulher. Outra imagem da cultura ocidental é acionada, a fênix, a ave que renasce das próprias cinzas. O sujeito poético rejeita a ação de Jesus/Herr God e ressuscita a partir de si mesmo. Em tom ameaçador, contra o inimigo que o oprime, a medicina, a religião, o patriarcado, afirma devorar homens como ar. Com seus cabelos vermelhos, evoca uma imagem de chama, de fogo, que cresce a partir do ar, do oxigênio. Renasce para a quarta vida tendo as próprias cinzas como alimento.

Deixando de lado questões estruturais da construção do poema e focando exclusivamente no conteúdo, é possível dizer que Lady Lazarus trata de mortes, concreta e simbólica, de um eu, oprimido como mulher e como indivíduo que tem sua condição psicológica explorada. O poema parte do particular para acessar o universal, recorrendo a imagens da cultura ocidental. Não é necessária nenhuma informação sobre a vida de Sylvia Plath para alcançar possibilidades de sentido do poema.

Assim, é irrelevante para interpretação de Lady Lazarus saber que o poema foi escrito depois de Plath ter tentado morrer provocando um acidente de carro; que ela tentou o suicídio ingerindo grande dose de remédios enfiada em um vão no porão por volta dos vinte anos de idade; que ela tinha avós maternos austríacos e pai alemão; que ela foi internada em uma clínica psiquiátrica e passou por tratamento de eletrochoque; que teve seus textos frequentemente negados à publicação; que era casada com um professor universitário, poeta conhecido e que foi infiel a ela. Seu poema pode ganhar outras conotações a partir dessas informações, mas a escrita de Sylvia Plath é grandiosa sobretudo por ela ter tido a habilidade de criar um eu ressurreto em sua escrita, um eu poeticamente ressignificado e independente de qualquer experiência pessoal que o possa ter impulsionado. Se sabia morrer excepcionalmente, ainda mais excepcionalmente sabia renascer em forma de poesia.

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Recomendo vivamente a audição do poema na voz da própria autora, disponível no canal Poetry Poems Poets. (Acesso em 20/04/2020). Veja, também, uma tradução literal do poema na revista de tradução literária, Ponto Virgulina, (Acesso em 20/04/2020).

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Renata de Castro
 é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.

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