SUSPENSÃO QUÍMICA – CAMILLA LORETA

Coluna | Escritorxs de Quinta


O baixo ventre tá pulsando, ou como diria minha tia Perpétua: Nessa casa não tenho sossego. Só que a casa aqui seria o meu corpo, o sossego seria ter menos vontade de transar.

Tô praticamente pra explodir de desejo, ou seria a ausência alongada de ter desejo por alguém específico? Demora, se não tiver admiração nem adianta. É necessário, para que o baixo ventre pulse, que os olhos se encontrem furtivos, as bocas falem sobre assuntos de dentro, de fora, naquele movimento de línguas que logo vão se misturar. Voltando para casa de um jantar com Lygia, fui agraciada por sua fala: Os caras não percebem que o que nos dá tesão mesmo é eles perguntarem sobre o que estamos pesquisando, o que estamos lendo, o que pensamos quando a noite chega… e nunca, nunca, a foto de um pau. Um pau eu escrevo: pau, no Google, e aparece um monte de foto. Concordamos, claro, somos praticamente almas gêmeas da amizade, eu admiro seu cérebro, seria mais fácil se a gente se apaixonasse e se casasse, mas a vida não é tão fácil assim.

Hoje Lygia não está aqui. Meu quarto, a luz do abajur acesa de frente à parede, cama, os livros, as colchas sobre o armário. Tem coisa, tem coisa demais. Olho pela janela e reconheço minha dupla que costuma se destacar flutuando sobre os prédios em imagem. Abro a boca e ela abre também. Sai umas palavras, e ela também gesticula:

Isso começa antes de agora, esse meu incomodo com o acúmulo. Recordações que anunciam minha memória, procurando um desejado sossego em outras paragens do tempo.

Tô conversando com minha dupla. Ela tem uma mirada ampla, assim como eu. Rio para dentro, me sinto um tanto lunática, mas sigo:

Tinha um lugar que eu costumava ocupar, escrevia de tarde meu romance e molhava as plantas.

Minha dupla responde, e as duas abrem os olhos admiradas: Eu sei. Aparecia por lá de vez em quando, nas janelas quando dava seis da tarde.

Ah! Bem… Você lembra das plantas no terraço?

Lembro, tinha boldo, capim cidreira, hortelã, milho, manjericão, guiné, samambaia, inhame… estavam na casa antiga, e depois foi pro seu terraço do trabalho, ou ateliê, ou escritório? Não sei, você tá sempre confusa em como chamar aquele lugar.

Você é observadora então… Diria que era uma casa compartilhada, acredito que as plantas trouxeram uma graça para seus ocupantes. Lá dentro era mais comum ter um monte de livros. Gostava do silêncio entrecortado por ruídos da madeira estalando com o sol, me dava um prazer singelo durante os dias que passavam. Tudo de carvalho, casa antiga, escada toda esculpida com flores no entalho de algum artista que passou por lá, como muita gente que já tinha passado.

Às vezes de noite, enquanto você escrevia, eu olhava para a mancha escura de umidade no teto.

É, eu também. Curioso que você já deve ter notado, muito comum que em todo lugar que eu vá, e você também, tenha problemas com água. Não que a água em si seja o problema, mas os canos, os cantos mal acabados, os furos, as telhas rachadas, as caixas d’agua sem concerto acabam me traindo e, eventualmente, um tanto de água entra por toda a epiderme dos ambientes que passo. Nessa sala não seria diferente, então lá estava a mancha.

Ah sim, sim, na casa antiga tinha a caixa d’agua que jorrava quando demoravam para tomar banho, não era? Lembro, lembro achar que era chuva, mas era a caixa d’agua.

Foi. Como você mesma percebeu… Mas voltando a casa compartilhada. Estava infestada de cupim, então foi resolvido que seria feita uma dedetização. Era começo de ano, primeiros dias de janeiro.

Sim sim, às vezes eu apareço pela tela do seu telefone se você não se recorda, ouvi essa conversa também com o dono da casa.

Claro, como pude me esquecer, volta e meia vejo teus olhos me encarando na tela antes de acender. Bom, a data escolhida para se espalhar o veneno pelos móveis foi o dia que antecedeu uma das piores chuvas de São Paulo. Não a que fez perder toneladas de melancias no Ceasa – não sei por que disse só da melancia, mas isso que me veio. Foi antes, um pouco antes. Então choveu muito, sacudiu as janelas de todos os lugares. Como eu não estava lá, por conta do veneno… Pensando bem, nem você, pois dançava comigo no quarto, eu me lembro, ignorando os trovões lá fora. Bom, uma folha do terraço entupiu os canos, a água entrou pela fresta da veneziana.

Por debaixo da porta tinha um furo enorme, coisa de casa antiga, que dava no teto das salas de baixo. Desaguou água por tudo, e por conta da descupinização, os livros que geralmente ficavam na estante azul estavam em cima da mesa que recebeu uma cachoeira vinda do lustre. Ali, em maior número, foram encharcadas Bíblias e a coleção completa de Jorge Luís Borges.

Sei, me lembro do seu desespero ao telefone recebendo uma mensagem contendo algo assim.

Mas olha só, era praticamente uma piada, claro que trágica, mas era uma situação de dilúvio. Há algo mais borgiano que isso? Ou bíblico? Como as folhas do terraço eram de minha responsabilidade, e claro que um buraco se aliou com a água para me deixar com uma tarefa árdua, tomei a missão de salvar qualquer livro que conseguisse. Minha mãe, meu pai e meu irmão vieram corajosamente me auxiliar.

Sei, teu irmão.

Separei folha por folha de uma Bíblia em latim que parecia ter 100 anos, as páginas eram daquele tipo que secas já tem uma finura inacreditável, molhadas necessitavam de pinças especiais para restauro que, claro, eu não tinha. Entre as palavras e profecias depositava um papel toalha para absorver a umidade. Segundo minha mãe isso ajudaria na próxima etapa, de jogar um jato quente de ar com um secador de cabelos, que eu mesma desisti de fazer um tempo depois.

Sei, tua mãe. Aquele dia eu não apareci, vocês mantiveram todos os vidros abertos. Provavelmente para arejar.

Foi. O cheiro estava insuportável. Meu irmão ficou encarregado das coleções de Borges. Ele havia participado por anos de um grupo de estudos do autor naquela mesma casa. Lembro que voltava encantado com o mundo labiríntico do argentino. Secar a coleção que já havia lhe rendido muitas viagens lhe pareceu justo.

Naquela época que teu irmão tinha um cabelo meio longo, e usava uns óculos redondos.

Foi. Havia uma fotografia na primeira página de todos os livros da coleção do autor. Ele então notou que vários dos livros tinham uma faixa seca, como se a água não pudesse entrar ali, bem na região dos olhos de Borges. E isso seguia por todas as páginas, na mesma faixa. Não sei se você sabe, dupla, mas o escritor Borges perdeu a visão aos 55 anos. Era hereditário, não tinha jeito.

Não sabia, nem sei quem é esse tal Borges. Acho que você nunca leu… Então não sei.

Costumo ler escritores argentinos pela manhã, não sei por quê. Mas de qualquer maneira, um dia leio de noite para que você possa conhecê-lo. Mas você vê, que sequência de coincidência bizarras, e a água era a grande diretora da narrativa.  Passei três dias inteiros nessa função. Declarei que tinha feito tudo ao meu alcance, deixando os livros todos em sanduíches de papel toalha sobre os sofás antigos da sala principal. O sol batia o dia todo naquele ponto, de qualquer maneira, talvez os livros iriam ficar secos e engruvinhados, mas fiz o possível. Cheirando mofo e cansaço, cheguei em casa e tomei um banho longo. Lembro de estar sentada na beirada da banheira tentando reaver minha energia. No final do ano havia pedido para que eu tivesse mais contato com livros, que isso fosse o centro da minha vida naquele ciclo que se iniciaria. Ri de mim mesma, com esse pedido sendo correspondido de maneira tão brutal.

Nesse dia eu estava lá, no mesmo ritmo de perplexidade.

No meu quarto liguei o abajur, provavelmente você lembra o que aconteceu.

Puxa, sim… Estando apenas de calcinha e toalha na cabeça abaixei para pegar uma garrafa d’água que mantinha ao lado da cama quando de repente ouço um barulho estranho, como se algo estivesse movendo. Me virei e parecia que o chão do meu quarto afundava lentamente. Pisquei para ter certeza do que se passava. Não era possível, não, não era possível. Um apartamento, o chão ia afundar? Então entendi, era meu armário que estava caindo, seu pé estava cedendo e isso me deu a ilusão que o chão que afundava. Gritei e segurei com toda a minha força que não é muita, mas naquele dia se provou grande, pois estive ali por alguns segundos com quilos e quilos no braço. Mas do lado de cá tudo é mais leve.

Do lado de cá fiz uma baita força. A sorte foi que no final nada aconteceu, bom, contigo também. Nada. Apenas aquele copo caiu, veio de cima do armário, sei lá por quê. Cheio de água, claro. Meus livros que estavam numa estante ao lado despencaram todos sobre meu irmão. Mas ele não se machucou e conseguiu me ajudar a tempo substituindo os pés por calços de madeira. Alguns livros ficaram encharcados, grande surpresa, em especial um de poesias que não lia tinha muito tempo e queria, agora está arruinado.

Sei que caiu porque estava pesado, com muita coisa. Eu mesma não fiz nada, um dia o armário apareceu abarrotado pelas seis da tarde. E o copo você colocou e esqueceu lá mesmo.

Mas você deve ter percebido que eu esvaziei tudo, doei quatro malas de roupas e tirei os pés do armário, agora ele fica no chão. Se ele cair, aí já não sei…

Pisquei para minha dupla, e ela pareceu se atrasar um pouco ao piscar também. Um microssegundo. Fechei os olhos fingindo não perceber. Deitei no chão e minha dupla desapareceu.

Não passou, ainda sinto meu ventre pulsar. Seriam os lábios ou os dentes que me faltam? Pode ser os dois. O dilúvio veio, depois desaguei minhas coisas, depois chegou o cerco do vírus que parou o mundo inteiro. Aqui se encontra esse desejo que não passa. Desde o dilúvio?

Ou seria antes?

Minha dupla saberia a resposta. Pensei em me levantar, mas meu corpo estava denso. Meus pés como que queimavam um pouco, sentia os líquidos alojados como uma bolha ali, e o resto do corpo talvez seco. Formigando. A água escorria em gotas até a panturrilha. Ou seria até o joelho? Joguei os pés para cima, na tentativa de combater tal situação: o acúmulo. Os líquidos ganhavam densidade a cada movimentação, demorando para circular. Juntei os dedos, as solas estão frias, tento pressioná-las. Líquidos frios então? Começo a dobrar os joelhos, e depois a esticá-los e depois a dobrá-los e esticá-los. Não percebo, mas minha dupla faz o mesmo. Ela não tem corpo, apenas dois pés que aparecem de vez em quando no reflexo da janela.

Encontro sola com sola novamente, esquentou nada. Suspendo os pés, contraio todos os dedos ao mesmo tempo e relaxo. Gargalhadas pulam da minha boca. Tem vezes isso acontece, me surpreendo com meu humor. Ouço uma gargalhada igual a minha, parece vir lá de fora, ou não?

Lá em cima estão os pés gelados, finalmente os líquidos começam a descer rápido, estou sentindo, chegam ao ventre e curiosamente seguem ao peito, aos braços, à cabeça.

Sinto até mesmo nos fios de cabelo.

Meu corpo inteiro pulsa de desejo. Eu ali deitada com os pés para cima, as palmas da mão no chão. Minha boca entreaberta deixa o ar erótico adentrar em carinho, amaciar a língua.   E nessa gemida contínua que é respirar, solto as pernas em alívio e me transformo toda em água, espalhando tudo, molhando tudo, como uma grande lagoa no chão do quarto.

Na janela minha dupla desapareceu, e olhando com cuidado um alguém veria pequenas gotículas de água no vidro, escorrendo.

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Camilla Loreta é formada em Audiovisual e História da Arte, em São Paulo. Pesquisa a escrita o corpo e a imagem através das artes gráficas e audiovisuais. Seu trabalho foi publicado pela Editora Caixa e participou de feiras com a Plana (SP e RJ) e Tijuana (SP e RJ) em livros e zines individuais e coletivos. Dirigiu dois curtas-metragens, Clara e O Silêncio das Pedras, sendo esse último selecionado para a Semana Paulista de Curta-metragem. Participou de diversas residências internacionais e nacionais, entre elas: Kaaysa em Boiçucanga (Brasil) com o estudo Como se salvar de afogamentos; Encosta Residência na Ilha do Mel (Brasil), onde desenvolveu projetos de impacto local, dialogando com as comunidades e histórias da região; a residência solo FUGA (Nova Iorque) que rendeu seleção no Festival do Filme Livre, exibido em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasilia em 2019; The Artist meeting em Marianowo (Polônia) onde iniciou a escrita do livro Sândalo Vermelho e os Gatunos Olhos Dela, seu romance de estreia como escritora, programado para lançamento em 2020.

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El autorretrato de Jorge Luis Borges
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