|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
poesia é lata sem fundo. gaveta sem rédea. cavalo solto surfando no mar. no entanto, por mais que a gente tente, nunca será possível dizer o que a poesia é. o que nela falta. o que nela excede. por mais poetas que existam, mais a poesia falta. mais a lacuna da palavra se alarga na tentativa de um poema. a poesia não é. as melhores conclusões são aquelas que aumentam o ritmo dos olfatos nos narizes que chegam primeiro à derrota do remate. poesia que bate na cara dos sabidos, e olha que são muitos, tão coitados. ressequidos. pra essa trupe (e pra quem estiver na de fora), Drummond manda a real:
Conclusão
Os impactos de amor não são poesia
(tentaram ser: aspiração noturna).
A memória infantil e o outono pobre
vazam no verso de nossa urna diurna.
Que é poesia, o belo? Não é poesia,
e o que não é poesia não tem fala.
Nem o mistério em si nem velhos nomes
poesia são: coxa, fúria, cabala.
Então, desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido,
resta a alegria de estar só, e mudo.
De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?
tudo que a gente passa e joga no papel com cara de poema. aquilo que a gente sente e cria numas rimas. aquilo que a gente joga na cara, vomita e come; e diz que é poema. pra tudo isso, chego à seguinte conclusão: não sei o que é poesia. vivo perguntando ao espelho quem é o outro lado. amei, sorri, vivi, sofri, e nada disso ainda é poesia. ou é. a gente se confunde. prestemos atenção às manhãs em que acordamos meio drummonds e dizemos ao vento que “Os impactos de amor não são poesia”. não há “aspiração noturna” que me diga o quanto o verso se prolonga para além das retinas tão fatigadas de outro poema, aquele perdido no meio do caminho da pedra. correr para a infância é um desafio. muito se distrai durante os trilhos enlaçados do disfarce, entre folhas amarelas, o tempo seco de um sol friorento. extravasa a aspiração ao meio-dia do passado. um outono-elo entre o hoje e as horas ainda futuras. tudo é infância desde a urna. uma profanação diurna das letras num verso. coisa de poema guardado na história da memória.
não adianta querer a estética bem cabida num traçado. outro poeta arnaldo também já disse: “o traço é o rastro do gesto”. muito antunes essa fala, diga-se de passagem. ainda mais quando se pergunta pela plasticidade do poema: “Que é poesia, o belo?”. não. não se detém num limitado espaço a imagem arranjada da beleza. não tem voz o que está fora do poema, pois só a palavra na poesia fala. também não adianta exercer o domínio pelo adjetivo das gentes. vocativo que é bom, evoca até quem não nasceu. os mistérios e “velhos nomes” aludidos estão na vertigem que eriça até estômagos. poesia, então, é cheia de desígnios: “coxa, fúria, cabala”. poesia pode até ser terra que corre nos ventres de quem se rasteja. coisa pequena em seu vasto tamanho. não tem badulaques ou penduricalhos. poesia é chão. até.
a essa altura do poema, estamos bem drummonds aos muros. já não se sabe o que vem lá. a certeza do quadrado não dá mais conta da simetria dos lados. tudo que se pensava saber de poesia se tornou partida. é tudo tchau e vai na sombra porque o poema está com a “mala pronta”. vai seu “corpo desprendido” brincar na falha da navalha. testar a sorte do ricochete mesmo quando os olhos estão bem fechados para o pasmo. não desanime você que agora não sabe mais o que escrever. que vê nessa pauta alguma bossa para se cantar pelos chuveiros da vida. quem sabe até um rascunho bem maroto de paisagem chegue àquele flerte malsucedido. a vida é assim: “Adeus, tudo!” porque o que resta vai-se embora com o pretexto das imagens. talvez se salve quem ficou para trás na fila. dizer-se agora é suicídio. adeus, você que chegou agora. que pegou o atalho para o meio da sintaxe. o silêncio é quem fala na estranheza do discurso. calar é tudo que resta na “alegria de estar só, e mudo”.
e nossos ensaios, o que são? “De que se formam nossos poemas? Onde?”. qualquer coisa que se valha em versos nem sempre pode ser um arranjo poemático. mas quem será o detentor da medida dos salves para as despedidas de quem ainda nem saiu de casa? há muita coisa boa, muito reflexo no lago. também há muita aragem sem compostagem. o lugar que essas palavras ocupam – tão imagens, tão sonoras derrapagens – não nos cabe mensurar. ou até cabe. talvez. desde que saibamos o tom que falta na flauta dessa canção. cantar como os cegos de oclusão imperfeita, mais ou menos como ouvi noutro dia num filme: “é preciso fingir ser poeta sendo poeta”. a gente finge o tempo todo no mundo, e finge que está fingindo. a metáfora pegou, que não larga mais os entraves dessa pauta de poeta fingidor, que finge tão completamente… mas onde é o quando do poema? pela dobradura metalinguística dos versos, a resposta talvez esteja nas dúvidas. no abalo – “ressentido” – do poeta. nas linhas esvaecidas de quando a gente deita sem pensar no céu. e se vira como pode. como nuvens.
p.s. 1. há alguns dias, tenho acordado meio drummond. não me pergunte o que isso quer dizer porque não faço a menor ideia do que significa. mas a frase – “tenho acordando meio drummond” – está me rodeando há dias. então achei que fosse um pedido, uma dica prum texto, embora eu nem seja lá um “alguma coisa quando muito”. imagina um poema do Drummond (agora, sim, com letra maiúscula!) me cercando!? não haveria ave maria que me daria tamanha felicidade! como não sou católico e nem federado a religiões, mas sim à poesia (embora eu tenha ótimos papos com deus, ainda mais quando assistimos aos filmes do lars von trier), topei esse desvio e acreditei que fossem uns assobios me rondando. então, resolvi cantá-los. como também não sou cantor (nem de banheiro), nasceu esse texto como prova de ascendência ao desejo de nuvens.
p.s. 2. durante a escrita desta alucinação palavral estive, além de meio drummond, também um tanto fílmico. passaram por aqui em ideia e voz o Arnaldo Antunes, numa frase – “o traço é o rastro do gesto” – que ele disse no documentário Com a palavra: Arnaldo Antunes (direção de Marcelo Machado, 2019). também uma fala – “é preciso fingir ser poeta sendo poeta” – do filme Bicho de sete cabeças (direção de Laís Bodanzky, 2001). já no âmbito dos poemas, dançou aqui comigo o “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa (e esse tenho certeza de que todo mundo reconheceu!). e, claro, o poema que me trouxe pra essa festança palavral foi o “Conclusão” que, para mim, apareceu no livro Antologia poética, organizado pelo próprio Drummond, publicado pela Livraria José Olympio Editora, em 1983 (quando eu só tinha dois aninhos). é isso. fique em casa. e só saia para as nuvens.
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Fábio Pessanha (Propriedade do Irreversível / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.