A VOCAÇÃO DAS CASAS ALTAS NA COMBUSTÃO POÉTICA DE ROBERTA TOSTES DANIEL – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

uma palavra me chama quando quer fazer cirandas. uma palavra que ama a chama do seu incontrolável incêndio, a ponto de queimar as horas da página estarrecida. inflama o tempo carcomido na sonoridade dos morfemas. mãe, eu quero ser poema. casa comigo, você que conheci hoje pela primeira vez ou desde quando no sol se fertilizavam as enxurradas incidentes em nosso encontro oculto. diz, então, o que te é no nome, o que te provoca, batiza e consome:

 

Vocação

Ser água depois que a palavra queima.
Ser o nome de coisas simples.
Nossas mãos desenrolando rios,
oferecendo braços
por onde a Terra corre, absoluta.
Bebemos. Ao largo do manancial, vazio.
Bebemos com estreiteza,
a ideia de um corpo, transmudado alfabeto,
a ideia de um sopro de hálitos nossos.
Nos perdemos em fulgurações estranhas,
dentro de casas altas, como nós,
andamos frágeis sob a amplidão.

 

vocação agrega estradas numa única palavra. às vezes, em mais vielas por onde o gosto de se perder é maior que valsa sem compasso. um lugar nascido para perseguir destinos. improvável é a linha reta a ser traçada pelo projétil de um morteiro ao queimar o rastro anônimo dos nomes, estes que nos chamam na rota de sua trajetória. precisamos ser apelo e consecução, a fim de narrar os enredos onde repetidamente nascemos “depois que a palavra queima”. ser anjo e legião na simplicidade das coisas, em tudo que é multidão e afogamento.

tateamos desenvoltos a profundidade das águas e percebemos os dedos que nos acompanham nessa ilíada. “nossas mãos [se encontram] desenrolando rios” durante o solfejo das nascentes. ofertam-se ainda os braços para agarrar o que da “Terra” é absoluto em dádiva e procura. nenhum desfecho é planejado nesse cortejo terreno. encarnamos a gênese da peregrinação e assim morremos, a fim de encadear o espaço onde hiatos se ambiguizam nos treinos de seus prosseguimentos. correr atrás do que é certo ninguém disso desconfia, quando na verdade o teto sobre as ruas em mergulho se ramifica. no encalço desse conto, a terra é toda rio. suas águas e contornos, dorso, combustão, mãos, pleonasmos, onde o chão se torna a costela de redemoinhos.

toda sede dessa vida abençoará os afoitos goles nessa nascente: “Bebemos”. estaremos em juízo, pois em verdade vos digo. nessa missa em prol dos rios chegaremos “ao largo do manancial, vazio”. vinde a mim os confusos pela largueza dos ritos, prestes a desembocar no paradoxo da dissidência, pois estreito é também o nome do cuidado, e com ele sorvemos a “ideia de um corpo”. é difícil compor as rotas para a finura dos leitos, uma concepção quase ingênua sobre o tato, sobre o paladar das águas e as letras desse “transmudado alfabeto”. transmitimos o conjunto dos nossos destinos à imperfeição das danças em nós incorporadas: estamos lúcidos ante o calor da palavra. aprendemos a ideia como doação. a forte presença na fisionomia que concede aos “hálitos nossos” a respiração prenhe de sopros.

por essas estranhezas nos desbravamos lícitos. brilham como lapso de luzes nossos largos lares pelo encadeamento de “fulgurações estranhas”. o poema expande o corpo em casas. habitações cujas portas quase sempre estão trancadas. achar a chave de cada entrada… um desafio que a poesia nos oferece. atentos estamos ao que reluz no relance dos telhados, tal como a arquitetura das construções urânicas. “dentro de casas altas” feitas à nossa imagem fincamos a decisão pela demora e nos esticamos o quanto podemos para alcançar o vazio dos mananciais. longos são os braços que se procuram, imensos os ramos onde deitam os rios e se misturam na lama das almas. nessa escuta, estamos sós e frágeis.

vocação é o que nos guia. talvez seja o próprio ato de nos perdermos por perto das nossas lonjuras. quem sabe o quanto de novo há nas construções de fechaduras? talvez só nos reste acatar o que nos há de mais singular. essa voz que fala quando pensamos, o aceno ao improviso, o aviso para medir com as mãos o riso. vai saber… “sob a amplidão” de nossos porquês, “andamos frágeis”… deitamos de costas para o sono, apesar de todas as correntezas da terra e da simplicidade dos nomes, quando pensamos estar envolvidos em nossas altas e comburentes janelas.

p.s. 1. essa coisa de morar na própria casa é um absurdo. não me refiro ao lar como construção em alvenaria, e sim ao corpo. essa imagem das “casas altas, como nós” ficou o tempo todo repercutindo nas outras imagens, e se você não percebeu, ótimo! disfarcei bem! foi uma extensa interferência que deu à luz um quadrilátero de vozes para alcançar um pouco do que diz o poema aos meus ouvidos. o que vem muito a calhar… meus ouvidos alargados em todo corpo para embarcar na visualidade palavral da vocação. um absurdo que nossa casa corporal seja, às vezes, tão inabitável. que queiramos trancar suas portas e colidir com a dificuldade de olhar todos os dias para as mesmas mudanças. mas acho que isso aqui não tenha tanto a ver com o poema… talvez com os porões das casas altas.

p.s. 2. a referência do poema! quase me esqueci… a propósito, acho muito chato quando alguém cita (copia, menciona, imagina etc.) um poema, música, seja lá o que for, e não dá a fonte certinha. então, como não sou vacilão, lá vai: o poema “Vocação” está no belíssimo Ainda ancora o infinito, de Roberta Tostes Daniel, publicado em 2019 pela Editora Moinhos, de BH. agora sim, me voy.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.

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