CARTA-ENSAIO SOBRE AS ENTRELINHAS – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


(para Rodrigo Oliveira, a respeito de Carcaça, de Josoaldo Lima Rego)

Oi, irmãozinho

Como tem passado estes dias? Há duas semanas reuni alguns poemas curtos sob o título “pequenas pulsações poéticas”, pra minha coluna na revista Vício Velho (acho que foi antes de te enviar aquele livro inédito pro concurso de Portugal que você postou pra mim), e essa ideia tem pulsado bastante na minha mente: a poesia como um tipo de pulsão de vida, em oposição a esses tempos (tão antipoéticos) de tanta morte. Então tenho lido bastante poesia.

O livro mais recente que li me lembrou você: Carcaça, de Josoaldo Lima Rego. Talvez por ele também ser professor de geografia, e por esse livro falar muito fortemente, tanto expressa como implicitamente, de geografias. O conceito de lugar é muito presente, há vários poemas que se estruturam em torno de menções espaciais, em torno da percepção de um lugar e das impressões sobre este lugar, ou da tradução poética de aspectos deste lugar. O primeiro poema já é uma espécie de condensação de um mapa-mundi:

JAUÁRA ICHÊ

O mundo não acaba em tuas mãos
A borda da dobra é frouxa
Da Anatólia vês o Piauí
Do Pantanal, a Antuérpia

Eu já tinha lido outros livro dele, Máquina de Filmar, do qual gostara mais ou menos, creio que por sentir não ter compreendido muito bem. Eu gosto de compreender. Há um tempo atrás admiti esta dificuldade num e-mail a um amigo poeta (cujo livro eu também sentia não estar entendendo tanto assim): a de me desapegar da necessidade do entendimento, do sentido. Quanto mais eu leio poesia, mais eu sinto que essa necessidade excessiva de querer entender completamente atrapalha mais que ajuda, tanto para apreciar quanto (veja que irônico) para entender possíveis significados que não estão postos de forma linear, unívoca, mas sim como possibilidades.

Esforcei-me, então, para não me aferrar tanto a uma busca de sentidos únicos nos poemas. Fugir do processo mental de ler e pensar “Ah, então é isto que ele quis dizer”. Talvez possa dizer que tentei deixar os poemas flutuarem, e também flutuarem os fragmentos de (possíveis) sentidos. Foi interessante. E acabou me lembrando ainda mais de você, já que também pode ser bem difícil te entender, você sabe.

No caso do livro, pareceu-me até proposital esta falta de clareza, ou falta de sentido(s) fechado(s), digamos. A começar por alguns aspectos formais mais evidentes. Os poemas são no geral bem curtos, alguns parecem mais fragmentos que poemas prontos (alô, Livro do Desassossego!), quase sem nenhuma pontuação final. Só há ponto final no interior de versos. No fim deles, o vazio, ou pontos de interrogação. Será que abolir a pontuação final, exceto quando ela exprime dúvida, é justamente um jeito de marcar a indefinição? Como se o espaço aberto que se deixa espelhasse um campo aberto dos sentidos. Ausência de certezas. Como diz o primeiro verso do primeiro poema, que transcrevi lá em cima, “O mundo não acaba em tuas mãos”

Como dizemos tanto hoje em dia (nesses dias surreais do Brasil), até aí tudo bem. O que me desconcertou mais foi o uso perturbadoramente errático das maiúsculas. A poesia tem uma relação interessante com este aspecto. Bandeira e nossa querida Sophia sempre usavam maiúscula no início do verso, independente dele começar uma nova frase. Drummond, por outro lado, obedecia a gramática. Atualmente é muito comum privilegiar as minúsculas, ora usando-as exclusivamente, ora reservando as maiúsculas para casos específicos desvinculados da regra gramatical. Em Carcaça, não consegui identificar um padrão, nem um critério (mesmo que não fosse absoluto) pro uso das maiúsculas. Há poemas integralmente em minúsculas. Em outros, os versos começam em maiúsculas. Em outros, elas parecem ser usadas após um ponto final que não está lá, ou simplesmente como forma de começar um novo bloco imagético, feito uma linha de costura atravessando uma peça de tecido que pode ser considerada um todo (o poema), marcando onde um pedaço se diferencia de outro. Como (divisões de) um mapa. Mas às vezes, nem isto fez sentido pra mim. Veja este poema:

CARBONO

alguém ousou
atravessar a rua
tapando os ouvidos

O implacável cão
amarrado ao carbono
da cidade
onde os raios do sol
vomitam

Por que começar o poema em minúscula e a segunda estrofe em maiúscula? Se os poemas podem ser lidos como pequenos mapas, alguns se destinam mais a desestabilizar nosso sentido de direção, nossa expectativa de como um mapa deveria funcionar, e menos a nos orientar (de novo, rumo a algum sentido final, imperativo, de cada texto). Mapas cifrados cujo destino cabe ao leitor terminar de desenhar.

Também no conteúdo, no que se diz, nas imagens que os poemas articulam e encadeiam, e nas que deixam apenas sugeridas, entrevistas, parece haver a possibilidade de sentidos outros, múltiplos, flutuando entre as palavras. Mais que isto, os poemas são como a carcaça de algo: do sentido que não se pode transmitir propriamente, com exatidão, ou da experiência que não se pode reproduzir. Deste algo, dos sentidos que não se sabe nomear, das experiências que não se pretende traduzir, só se pode registrar uma moldura a ser preenchida pelo próprio leitor, na ação da leitura. Estamos tão acostumados a encarar um texto como meio para se transmitir uma mensagem, que nos soa estranho quando ele se propõe a ser um esqueleto cuja carne, músculos, sangue e movimento compete a nós mesmos completar.

Um dos poemas, por exemplo, se chama “64 Títulos”: cada verso — devidamente numerado — um possível título de poema (ou mesmo livro) que cabe a nós, leitores, inventar. Veja este outro:

A conversa
refeita em ruído
depois a própria pele
esfacelada nos
muros

Enfim
o pouco que resta
pode parecer sonho
ou algo
impenetrável

Borra escrita
em lama

A conversa das coisas com as coisas, da gente com o mundo, refeita no ruído impreciso do poema, esse pouco que resta como suficiente a uma nova conversa, agora conosco, que pode parecer sonho, algo impenetrável, (ou) borra escrita em lama feito oráculo pra extrairmos dos signos escritos o sentido que nos falar mais alto.

Logo antes de ler Carcaça, irmãozinho, li as teses de Piglia sobre o conto na verdade sempre contar duas histórias: uma visível e outra “secreta”, construída com os subentendidos entremeados na materialidade expressa da primeira. Os poemas do Josoaldo também são assim. Em alguns, pressente-se tão fortemente alguma outra conversa por trás da que o poema materializa, mas ao mesmo tempo esta conversa pressentida é tão elíptica, que o poema/a carcaça pode na verdade encerrar diversas histórias secretas. Como todo oráculo. Aliás, nesta perspectiva, repetidas referências à Grécia e suas histórias (que também nos chegam como eco, como textos vazados de ausências do que se perdeu) também funcionam como recurso a mais de construção desta proposta de conversa ao longo do tempo entre as palavras escritas e nós, que/quando as lemos.

Foi divertido, Rodrigo, reconhecer quais poemas conversariam mais contigo, de acordo com as histórias visíveis (suas carcaças de palavras, as linhas traçadas do mapa) que eu sei te chamarem mais atenção: os que falam dos interiores daqui, das gentes daqui, dos bichos daqui. A mim, neste agora tão antipoético que vivemos por aqui, como te disse, a voz mais constante a atravessar e emergir das páginas cantava um quê de ruína, ecoando o titulo do livro. Mas a tua companhia, estranhamente nascida justamente da distância, da ausência, da saudade, trouxe um pouco de dengo aos poemas mais rascantes, às entrelinhas cujos silêncios guardavam maior perigo.

Espero que também esta carta-ensaio, com suas histórias entrevistas, com os versos que não transcrevi, possam te fazer um pouco de companhia, feito um outro jeito de conversar nessa distância atlântica. Te deixo (por enquanto) com mais um poema do livro, que sintetiza as incompreensões e possibilidades de que falei até aqui e nos desafia a seguir mapeando o que não se esgota no que escrevemos/lemos.

 

ENTREVERO

O ranger de dentes
é pouco
porque o susto
não acabou
Resta a fronteira
Pedaço de arame farpado
enroscado na cara

 

Te amo, irmãozinho.

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Thássio Ferreira
, escritor radicado no Rio de Janeiro, é autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018 —  obra vencedora do i Concurso Literário da editoria universitária). Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de LetrasEscamandroGuetoMallarmargensRuído ManifestoGerminaRevista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Mantém página no Facebook e no Instagram