PONTOS DA TECEDURA DE “ODISSEU NEGRO” – RENATA DE CASTRO

|SIBILA
Por Renata de Castro

Dia bonito pra chover, da escritora Lívia Natália, é o quarto livro de uma série interligada pelas águas. Não só os títulos de seus livros remetem às águas, como seus poemas as transbordam. No entanto, há outros elementos que se repetem em sua poética – uns mantêm alguma relação com as águas, outros não –, como, por exemplo, a figura de Odisseu. E é justamente o poema em que ele aparece no título que proponho pensarmos.

 

Odisseu Negro

Cessou o tempo das frutas maduras
e lagartas estranhas comem o verde das folhas.
Tudo é bruto e das pedras cresceram raízes temporãs.

Esta estação de cores devassadas,
esta terra lacrimosa,
esta noite sem perfume de brisa
perdurará, matando em nossos dentes,
o hálito doce que nos dizia da vida na boca?

Vejo seu barco macio na pele das ondas,
e meus dedos seguem tecendo o
caminho.
Resta, em seus braços que navegam o tempo,
força pra ferir as Águas e voltar,
demudado,
para este reino que te aguarda,
após a travessia?

Seu leme vem cavando o percurso nas Correntezas.
Sei que chegarás, porque está escrito na carne do sonho.

E eu permaneço insone bordando,
nas horas do dia,
todo o seu manto.

 

Odisseu Negro é um dos trinta poemas que compõe Dia bonito pra chover. Segundo a própria autora, em entrevista ao jornal virtual À Tarde, todos versam sobre o amor, recorrendo a imagens tanto da mitologia clássica quanto a imagens bíblicas.

Uma das possibilidades de interpretação de Odisseu Negro é sob esse olhar erótico-amoroso: uma Penélope que espera, tendo já passado a primavera, seu Odisseu. Este é um personagem que evoca uma longa ausência, permitindo-nos, assim, considerar que não foi a primavera do eu-lírico que passou, mas sim a do amor dos dois. Penélope passa estações a fio tecendo o tempo do retorno de Odisseu, em uma dimensão erótica de colheita, que acaba, porém que é capaz de produzir raízes tardiamente, mais profundas que frutos, em solo embrutecido, um desejo que resiste a temporalidade do que lhe é fecundo.

Há dúvida na segunda estrofe sobre a permanência do ‘hálito doce’ em um cenário de tons e cheiros esmaecidos. Apesar disso, a terceira estrofe demarca que ambos estão eroticamente em movimento: Odisseu-barco navega águas e tempo, enquanto Penélope cria o caminho com os dedos; um evoca um balançar contínuo de ondas, outro de dedilhado. Ainda é possível destacar o terceiro verso ‘caminho’. Ao mesmo tempo que desempenha o papel de complemento do verbo tecer, do verso anterior, também pode ser interpretado como um verbo em primeira pessoa. Deste modo, há um eu-lírico que, embora espere, não está parado, é ativo. Também essa estrofe termina com uma pergunta, que indica outra expectativa além do retorno, sobre força e mudança, já que o reino do eu-lírico só será acessado novamente após a travessia.

As duas últimas estrofes desfazem as dúvidas e afirmam a chegada de Odisseu, senhor de sua direção, de seu leme, depois de um percurso difícil de ser feito. O eu-lírico fia-se ‘na carne do sonho’, na antítese do material e imaterial, no liame entre corpo e sentido. Os versos finais trazem uma Penélope, que depois de ter costurado o caminho de seu Odisseu, borda sem parar o manto que o vestirá no retorno, no reassumir seu lugar no amor.

A primeira referência à água no poema está na segunda estrofe, ‘terra lacrimosa’, o que não nos permite sustentar por muito tempo uma imagem de certa aridez insinuada na estrofe anterior, uma vez que terra molhada é fértil, evoca lama e criação. Lágrimas são águas salgadas, como as do mar, e assim a palavra reaparece na estrofe seguinte, ‘Águas’, iniciada com letra maiúscula, ganhando volume na simbologia da trajetória do retorno de Odisseu. Três versos depois, a palavra já é ‘Correntezas’, e as águas que eram lágrimas tornam-se não só imensas, mas também fortes e difíceis de serem navegadas.

A partir da ideia da gradação das águas e ao que elas podem remeter – dor, caminho vasto e obstáculo –, é possível uma interpretação que leve em conta esses corpos erótico-amorosos em uma perspectiva mais ampla em termos de representação, no entanto mais estrita em termos de significação.

Se focarmos apenas nesse poema e deixarmos de lado todos os outros “odisseus” que aparecem na obra de Lívia Natália, podemos nos centrar não na figura do amante aguardado, mas na figura do herói que supera uma muralha de dificuldades com estratégia aguerrida – assim como a autora, que do lugar de escritora negra, faz uso de uma estrutura poética eurocêntrica, penetrando, dessa maneira, um terreno que lhe vem sendo negado. Como ela afirmou na entrevista mencionada acima, “é um jogo duplo para o leitor: enquanto lê dentro de uma estética etnocêntrica, imerge num corpo discursivo extremamente negro”.

Sob essa perspectiva, o título do poema é bastante significativo, de uma só vez referencia e reescreve-se. Se Odisseu retoma o herói, ele é reescrito pela palavra ‘Negro’, iniciada com letra maiúscula, não tendo função adjetiva, mas sim, substantiva, especificativa; é ela que determina que odisseu é esse. Ele vem carregado de história. Ocorre uma fusão entre um odisseu literário e um odisseu não-literário reescrito poeticamente, ou melhor, representado esteticamente.

O eu-lírico não se diz Penélope em nenhum momento, assim como não se diz feminino por meio de marcas de gênero – há apenas um adjetivo relacionado ao eu-lírico, ‘insone’, comum para os dois gêneros. Entretanto, sua atividade de tecer e bordar está demarcada e apresenta uma esfera gestacional, uma esfera, pois, da força feminina.

O Odisseu Negro tem seu caminho criado por uma geração que tece, por gerações que têm tido ‘o verde de’ suas ‘folhas’ devorado por ‘lagartas estranhas’, mas que, apesar do embrutecimento, têm ‘raízes temporãs’ que cresceram ‘das pedras’, que existem, que resistem. Aqui também parece ser um cenário de escassez, todavia alimentado pelas primeiras águas. O eu-lírico tece sem parar o retorno de Odisseu e vislumbra sua chegada para assumir o lugar que lhe é devido. É um caminho que exige força e, por isso, além do que é tecido, Odisseu também precisa cavar a rota com seu leme; é um trabalho conjunto.

O poema traz tanto a dimensão do romântico no indivíduo, quanto do épico no coletivo. As duas teceduras ocorrem em paralelo. Odisseu Negro ganha textura com seus elementos plurissignificativos e intertextuais: é um corpo Negro individual amante, mas também é um corpo Negro coletivo emancipador.

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Renata de Castro
 é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.