|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
tenho o hábito de procurar distâncias entre as palavras. de vez em quando, vejo uma lonjura nesse trâmite. ou então, mais de perto do que o normal, o traço vem com tudo a reboque de rumorejos. como desligar o freio e deixar as rédeas do cavalgamento para ocupar existências. quase um paradoxo. essa prática de acondicionamentos a gente guarda de uns modos sucintos, às vezes estranhos, algo assim:
para guardar
anotou em seu moleskine a palavra laringe.
o poema, em geral, cresce em volta de uma palavra estranha.
às vezes nem tão estranha, mas que provoca uma pequena paralisia.
[e eu adoro ser flagrada por essas palavras]
elas interrompem o meu dia, param tudo mesmo.
de vez em quando, quando posso,
pego elas com as mãos
e aí desenho um espaço pra elas, feito de letras.
tal como um lembrete. ou uma coisa que não se larga assim tão fácil. a questão, no final, se mostra à maneira de um destino irrecusável. colher das próprias mãos algumas aprendizagens inalienáveis e estar atento “para guardar” pequenas paralisias, antes de as letras as tomarem em formas. e mais. antes que se faça a escolha por um nascimento, uma identidade com algumas recusas. guardar como um modo de acomodar linhagens e desprover do cinzel os entalhes.
vigio, inventando escapatórias até o poema fugir dele próprio. preservo com força a palavra difícil. por mais que a escreva, que o desenho seja breve, que a dança comece longa, eu me vejo à procura dos sapatos largados. penso: guardar é um destino! faz bem anotar rapidamente o rastro da ideia enquanto as letras se embaralham. uma imagem, e depois a sentença: “anotou em seu moleskine a palavra laringe”. daí pra frente é tudo derredor. o poema desenvolve uns encontros com a gente. afia ranhuras para afinar a dissonância da língua. a rota de perseguição das letras é alterada dez mil vezes enquanto se procura um jeito de acolher flagrantes. “e eu adoro”.
estranho. é isso que é. o poema mesmo. o modo como ele nasce. seu jeito de praticar a gênese do mundo. a realidade. essas coisas meio filosóficas. há quem diga que o poema seria uma extensão do poeta. ou que seu processo obedece a alguns ritos monogâmicos. há ainda os que defendem a sutileza de se assobiar com a língua nos lábios para entrar num enjambement. eu gosto desta ideia: “o poema, em geral, cresce em volta de uma palavra estranha”. depois, ficamos extravagantes. a gente entra na lábia da frase e tira a roupa para uns versos bem safados.
… mas de repente você tenha razão. tudo deve ser culpa dessa tal palavra… estranha, ou nem tanto… – porra, laringe! – não deu tempo de abrir direito o caderninho. olhar o contexto, pesquisar campo semântico, limpar ancoragens em excesso, chamar o texto de poema. nada. antes disso, foi só paralisia. acontece às vezes, nessa onda de estranheza. tudo segue bem comum, cada coisa no seu lugar (a gente pensa…) e de repente: laringe! o dia inteiro vai nessa de desdobrar palavras… talvez nem seja mesmo culpa da tal laringe, que só conheço por foto. mas a ideia de laringe parece aquele poema do Pessoa: “O Universo não é uma ideia minha. / A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha”…
tenho o hábito de procurar distâncias entre as palavras. dar nomes e colher provisões para hemistíquios. tudo com as mãos. é desde uma aprendizagem digital (dessa dos dedos) que me atrevo a me guardar com elas. se eu ficasse submerso, levaria um pedaço do mar – desses de quando a gente ajoelha na areia para agarrar a água – dentro do poema. ficaria compenetrado na estranheza de palavras tão conhecidas. estas são as mais intensas. de tanto que as pronunciamos, ocupam a mecânica de nossa embocadura. até o momento em que se dizem mais forte, e “elas interrompem o meu dia, param tudo mesmo”.
um processo exclusivo para cada palavra repentina, para cada uma anotada no moleskine. as pequenas paralisias desses encontros são muito valiosas. um átimo para o tempo corrente, para o corrido das demoras que, no geral, se acomoda entres as vírgulas ou pontos finais. quando não há pontuação, a ocupação do poema talvez se resguarde no ritmo, não sei ao certo. isso de estar em “volta de uma palavra estranha” e crescer com ela nos afeta mesmo. tenho o hábito de procurar distâncias entre as palavras “e aí desenho um espaço pra elas, feito de letras”.
p.s. 1. o poema “para guardar” abre o livro chá de jasmim (Patuá, 2014), de Ana Estaregui. tenho pra mim que começar um livro com um poema como esse é algo bastante especial porque, de alguma maneira, reconfigura a leitura em relação aos poemas seguintes. como se nos acenasse para uma metalinguagem tal, que tudo escrito daí por diante seria refecundado pela ideia de um constructo incessantemente redesdobrado na singeleza. uma arquitetura que propõe certo paralelismo de leitura, isto é, uma dobradura formal e informal (em seus amplos sentidos) enquanto os poemas se apresentam para nós. uma leitura atenta às sutilezas. ou então, é só um belo delírio meu mesmo… vou seguindo aqui no chá com a Ana…
p.s. 2. ah, quase ia me esquecendo… o poema do Pessoa que apareceu por aqui está na voz de Alberto Caeiro, e seu primeiro verso é “No dia brancamente nublado entristeço quase a medo”, disponível em Arquivo Pessoa
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.