LUCIANA PIMENTA: ONDE NO CORPO HÁ BOCAS E POEMAS – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

rente à linha demarcadora das virtudes, estive afeito ao espaço de provocação do poema. como se pelo nome se reconhecesse a dobradura dos delitos ante a sedução do que está por se dizer. escalamos, pois, os desafios da forma quando – sujeitos à penalidade da voz – verso a verso se chegasse ao vestígio de alguns empreendimentos materiais. e assim foi. por um triz, ficou incompleta a trama desse efeito de cesuras. inconclusa, como decência para o remate de uma instigação:

Desafio anatômico

A anatomia não saberia dizer
onde, no corpo, a boca
que declama o poema.

uma vez me disseram não eu não aceito. isso foi o suficiente para a instalação de um mecanismo mais forte que a amplitude do poema. melhor ainda: não do poema, mas do dizer do poema. não ainda não o ato agoral de dizer o poema, e sim, isso mesmo, o dizer além e antes do poema. o exame mais acurado das cisões talvez diga onde no mapa o poema arranje um modo de se encaixar na boca. eu não aceito, assim foi dito. assim foi escrito que no máximo a embocadura do verso caiba onde se possa meter os dentes. que os dentre aqueles que se aventurarem na elegia do verso mais perfeito caiam no engano da vaidade. perfeição não há, embora a opinião seja também uma presunção cumpridora de assonâncias e veleidades. “desafio” poderia se dizer ser o afiançar do apreço, mas a encruzilhada dessa palavra, seu corpo impreciso, ao mesmo tempo aceita o combate e se embrenha ainda mais adentro da intensidade do fio, do que é mordaz. o apuro imperfeito desse “desafio anatômico”. não afiar e ser mais dentro do corte a partir das instâncias simultâneas do “des-”. uma confiabilidade contínua tal qual um enigma.

que saber diria a coreografia fractal do corpo? com qual dos vestígios poderia se vestir a justa medida do excessivo? faz-se pronto quaisquer ensaios possíveis. a anatomia, por mais inconteste dissecação feita, “não saberia dizer”. tampouco a tetralogia dos suicídios seria capaz de conduzir a forma ao próprio formato. não saberia, talvez nem desconfiaria da morfologia do alfabeto. as dissidências encontradas entre afeto, sintaxes e gramáticas estariam, quem sabe, no limiar de sua aparência. em essência, cabe a recolha do exame. a estrutura basal do sentido, ainda que sujeito à falência de algumas asserções. uma vez me disseram não eu não aceito, e eu insisto no apego mesmo assim com esse jeito atrapalhado de pôr as mãos onde no corpo se cumpre o rasante no que um dia será testemunho.

procurar-se-ia um pouso. a extinta madeira da qual se colheria a serragem de suas fricções. apontaríamos para o instante “onde, no corpo, a boca” estaria incrustada. uma vez me disseram – cercando com os olhos a dúvida – a necessidade de alinhavar rebelião e sacramento. a unção dos corpos no nascimento dos lábios se torna a maior glória da redenção. dizer. o verbo mais instável entre os módulos repentinos da fala. dizer como alma descolada da antinomia corpespírito. a procissão segue o carisma temporal do lugar: onde no corpo a boca é entrada. onde no corpo a boca abriga o portal de troca entre os mundos a serem recriados no poema. isso também se chama, aqui, nesse lugar, anatomia longitudinal do hiato. tentar uma saída, já te digo, não se esqueça, é uma alegoria atada à criação da origem de todas as origens. onde no corpo a boca é por onde alguém se perde.

dos labirintos fossilizados na alvenaria da ancestralidade, recorre-se com alguma constância à aporia. uma vez me contaram tudo sobre a verdade. me dissecaram a narrativa desde a gênese ao apocalipse. ficou claro com a invenção dos enigmas que a hegemonia do real cabe numa única palavra. o poema, qualquer poema, reconstitui a genealogia da imortalidade. o primeiro gesto encenado antes do nascer. o último anagrama da felicidade na procura por respostas. uma vez me disseram não eu não aceito, apesar das filosofias necessárias a algum estado de existência. disseram-me que o poema está todo no dizer, que a voz acontece a partir de ausências. o claustro estrondoso de onde pode nada se ouvir. assim consiste a insistência “que declama o poema”. a boca. o resto do corpo cuja sobra é sempre uma iniciação. o ritual das ficções onde me disseram não eu não aceito porque não havia luz. propor aos olhos a homologação do que já existe e não tem barulho é uma hegemonia a se deter. é preciso haver contestação. é necessário pronunciar o poema onde no corpo há bocas sob dizeres anatômicos. um desafio.

p.s. o tamanho de um poema não se mede pela estatura ou quantidade de seus versos. o tamanho de um poema não se mede. o tamanho de um poema é até onde ele está para chegar. não há como conter a propagação de seus afetos. foi dentro dessa linha de pensamento que o poema “Desafio anatômico”, de Luciana Pimenta, me pegou em repertório de sensibilidades. do livro Morada (Letramento, 2017), ele arquitetou uma relva de variantes para composição de leituras em mim. e assim vamos seguindo. Luciana é poeta e professora e é professora e poeta, transitando entre Direito e Literatura na PUC MG, onde comete aulas e existências.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.