MÁQUINAS DE MOER – THÁSSIO FERREIRA

|Alguma coisa em mim que eu não entendo
Por Thássio Ferreira

Vou subir essa porra!

E subi.

A cabeça dói, as pernas doem, o braço direito também. A luz do sol dói. Os lábios ressecados doem fissuras sobre as quais burra e instintivamente passo a língua pastosa, fazendo-as arder mais salgadas. Lanhos nos cotovelos e nas mãos se acendem juntos, ardendo também. O peito dói, feito esmagado. Eu não devia ter entornado aquela meia garrafa de vodka.

Ou talvez não devesse ter emendado a meia garrafa, esquecida na geladeira desde antes, desde alguma festa inofensiva da época em que havia festas e nos reuníamos pra celebrar e esquecer a vida, com outra, fechada no armário, acreditando burra e instintivamente (burro, burro, burro! meus instintos são todos burros, caralho?) que a coca-cola, o limão espremido e o açúcar dariam conta.

O concreto da calçada arde embaixo de mim. Encosto a cabeça na parede e engulo a pouca saliva, grossa, amarga, com dificuldade. O penúltimo dedo do pé esquerdo, antes do mindinho, lateja como se quisesse romper a pele, como se os ossos pudessem latejar feito um músculo, como se quebrado, será? Eu nunca quebrei nenhum osso, nunca bebi tanto, não sei.

Eu não imaginava que seria tão difícil, e olha que nem era, quero dizer, poderia ser bem pior, era a minha casa, afinal, eu e meus confortos, eu e meus privilégios, mas agora sem o privilégio que eu não imaginava tão necessário de poder sair e fugir das minhas neuroses, da solidão, mesmo que eu pudesse espiá-las de rabo de olho aqui fora… — e abro os olhos, meio que pra me certificar de não ter nenhuma versão antropomorfizada dos meus fantasmas ao lado, meio que pra tentar entender onde estou. Aqui. Acho que sim. No alto. No chão.

O corpo sujo, os grãos de asfalto e sei lá o quê mais entranhados no cabelo, pesando nas pálpebras, arranhando a pele do rosto enquanto faço caretas de dor e me engasgo com o choro que não sai. Como eu saio daqui?

Eu não aguentava mais. E não aguentava mais me sentir um merda por não aguentar tão pouco, apenas a minha própria vidinha burguesa em versão concentrada, trancafiado, pedindo comida entregue por gente bem mais fodida que eu e que aguentava, e tentando expiar a minha culpa em gorjetas e — porra!, eu só queria que esse sol fosse embora, com essa ardência maldita que tá me fazendo lembrar dessa merda toda e…

Tentar esquecer é o jeito mais seguro de lembrar, eu lembro que pensei exatamente isso quando eu já tava na rua vazia, feito um zumbi, porque uma garrafa e meia de vodka e três latas de cerveja não foram suficientes, nem pra esquecer nem pra aguentar. E de novo eu tento esquecer e lembro, e mesmo que aos pedaços latejantes, borrados, é quase como se agora eu quisesse lembrar, e sei no olho calmo do rodopio que a vista de novo fechada não amaina, que hoje há mais pra ser lembrado, embaixo deste sol sem disfarces, do que havia ontem quando eu saí por aí a (tentar) esquecer tanta coisa. Quantas viaturas eram? Quantos PMs?

Como eu cheguei neste beco? Eu queria ver o céu. Desaguentar só um pouquinho, alguns minutos, alguns passos, quanto tempo será que eu dancei torto pelas ruas, a ladeira, mas pera, antes o tombo, eu lembro!, pelo menos um tombo, sim, outros?, e uma garrafa nas mãos, outra?, o céu, no fim das contas eu mal lembro do céu, e tudo lateja mais doído se eu tento lembrar do que se eu tento esquecer.

O choro ainda engasgado. Água. Um banho. Um cigarro talvez, tudo isso eu queria, agora, porque o céu agora eu não quero, parece pequeno pra tanto sol como ontem tudo parecia pequeno, o meu apartamento, pequeno demais, e o meu coração apequenado, covarde, e bem de cara pra ladeira eu achei que lá de cima o recorte de céu entre os prédios podia ser menos pequeno, eu pensei isso, “menos pequeno”, a gente pensa de uns jeitos estranhos, né, quando tá bêbado e não aguenta mais, e vou subir essa porra!, foi isso que eu pensei. E subi.

Mas não lembro da porra do céu. A sensação estranha de que os objetos estavam parados como nunca e ao mesmo tempo mareando e emborcando a cada passo (como agora enquanto lembro e latejo de olhos fechados), os pés trançando, a pele rasgando contra o chapisco, os tropeções prenunciando um tombo capaz de me quebrar todos os ossos e…

Então. Os sons confusos, carne contra carne, estalos, botas contra carne, choro, carne contra concreto, risos, gritos abafados, e logo os vultos, as fardas, o menino caído e agora, dentro do preto dos olhos, pra fugir da brancura do dia, parece que vendo feito uma espiral bicolor que vai puxando meu olhar como fosse uma lente girando pra ajustar o foco, do preto da noite pra dentro do branco da luz dos faróis pro miolo daquela covardia onde o corpo preto dele se contraindo todo em volta do branco dos olhos com a revolta e o medo luzindo dentro do preto das íris.

No fundo preto daquelas íris que me olham congeladas em meio à espiral girando no ventre desse ontem, o reflexo: o ângulo em que, além de ser visto, aquele olhar me vê, é isto? É isto. E para além da revolta e do medo existe ali um pedido de ajuda. Aperto com força as pálpebras e movo os lábios sob o sol na esperança (burra, burra, burra? minhas esperanças são burras como os meus instintos?) de que este esgar consiga espremer dos músculos a memória, uma resposta, mas: não. Silêncio.

Então. O quê?

O esquecimento pode ser tanto um tipo de benção quanto de barbárie.

Será que eu…? Quero acreditar que sim, e por isso acredito, pra não ser um merda, mesmo talvez não acreditando e não sabendo de onde afinal vieram esses cortes, essas pontadas, esse pedaço de dente que numa passada de língua justo agora cai, quica num dente de baixo e vai parar na goela. Engulo o caco por reflexo (malditos instintos burros), numa nova esperança de que ao menos ele desengasgue o choro. Mas: não.

Silêncio.

O tempo rasgado entre ontem e agora e a minha boca muda. O sol dardeja algumas chamas a mais de ardência, feito dedos a me estapearem a bochecha pra eu acordar, e desisto (covarde, covarde!) de tentar lembrar, desviando a atenção que ainda consigo conjurar em mim, em meio à sede e às dores, para outra indagação (inútil, inútil, seu merda!), sobre este outro passado que me atinge sem nenhuma dúvida: há quanto tempo será que lamberam na superfície do sol as labaredas responsáveis por essa ardência que me atinge neste exato momento?

Abandono a pergunta com a mesma rendição que no momentésimo anterior me levara a ela. Tento me ajeitar melhor no chão, como um ensaio de levantar, e o corpo inteiro dói ao mesmo tempo, carne ou massa moída que pra reorganizar vou precisar de toda a minha atenção, livre de pensamentos e de outra memória que não a motora. Mas antes que eu me renda, penso como em meio a esta outra enorme máquina da morte, invisível, solta pelo ar, as máquinas humanas de moer gente — em becos e à luz do dia, às nossas vistas, e muito à minha sim, máquinas com nome e sobrenome e ternos e fardas pra moer pretos e moer pobres e putas e párias e quem ousar (e será que eu…? porra!) e moer quase todas as pessoas pra caberem nas muitas máquinas mais de moer e matar a todos nós com seus muitos dentes que é preciso enfrentar, eu sei, eu me digo, eu me disse, talvez?, eu me digo — essas máquinas também seguem soltas e não descansam. Ao menos estou vivo, eu me digo, e o silêncio que destila dúvidas sobre mim e o menino mói a merda por dentro e o choro sai.

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Thássio Ferreira
, escritor radicado no Rio de Janeiro, é autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018 —  obra vencedora do i Concurso Literário da editoria universitária). Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de LetrasEscamandroGuetoMallarmargensRuído ManifestoGerminaRevista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Mantém página no Facebook e no Instagram