ANAÏS NIN E A ARTE DE TORNAR-SE UMA OBRA – RENATA DE CASTRO

|SIBILA
Por Renata de Castro

 

     “Se unidade é impossível para o escritor […],

pelo menos a verdade é possível,  ou a sinceridade sobre as insinceridades de alguém.”

Anaïs Nin, in Henry e June

 

Cada escritor relaciona-se de modo diverso com sua própria escrita e, embora algumas correntes da crítica rejeitem esta ideia, é certo que a vida do autor tem uma maior ou menor influência em seu processo criativo. O processo de Anaïs Nin é fortemente marcado por sua prática de escrita de diários, pelos traços autobiográficos em sua obra ficcional e por seu erotismo, o que, muitas vezes, suscitou críticas a sua produção.

Nin não é uma escritora muito popular na academia e tornou-se mais conhecida pelo público em geral depois da publicação de seus diários não expurgados a partir da década de 60. No entanto, antes disso, desde a década de 30, Nin já havia publicado contos e romances – além de ensaios, crítica e tradução. Dita por alguns críticos como uma escritora menor – há até quem a diga a maior entre os menores –, contra ela pesa o argumento de que sua obra ficcional é permeada de elementos autobiográficos eróticos e de que diário – sua mais destacada produção – é um subgênero, está no limbo entre o literário e o não-literário.

Em uma perspectiva mais estruturalista, gêneros como memórias, confissões, cartas ou diários não interessam à crítica, uma vez que são formas ligadas à vida do escritor.  Mas não apenas isso faz com que esses gêneros sejam deixados à margem da literatura canônica, como também, pelo fato de apresentarem um caráter íntimo, são associados ao público leitor feminino, logo menor. Embora a literatura de autoria masculina, mesmo antes do Romantismo, já fizesse uso de tais gêneros como recurso literário a fim de aproximar o leitor do texto, de fazer com que este leitor pudesse se identificar com o texto – produção muitas vezes direcionada efetivamente a um público leitor feminino –, os textos de Anaïs não apresentam marcas que indicam um público alvo específico, mas sim uma produção específica, ela fala do lugar de mulher.

Um nome que está sempre associado ao dela é o de Henry Miller. Ele se tornou um escritor destacado na literatura norte americana em meados do século passado, depois de algum tempo da publicação de Trópico de Câncer, obra publicada com a ajuda direta de Anaïs. Os dois se encontraram no início da década de 30, em uma Paris efervescente, no entre guerras. Foi um encontro profícuo para ambos. Passaram anos em um relacionamento amoroso que impulsionou a produção dos dois. A relação deles foi marcada por uma paixão intensa e, sobretudo, por uma expressiva produção artística. Foi esta relação – e isto é sabido pelos diários – a responsável por um florescer sexual de Anaïs. Enquanto Henry Miller foi aclamado – depois de censurado, é bem verdade – por seu erotismo, Nin foi colocada à margem.

É interessante observar que personas masculinas como a do escritor Henry Miller – boêmio, sempre entre prostitutas e com grande consumo de álcool – costumam ser criticadas por conservadores, mas enaltecidas por um grupo de discurso amoral. No entanto, esse mesmo público que considera positiva a forma como Miller trata o sexo, seu grande tema, em seus romances, não parece apreciar o mesmo na produção de Anaïs Nin.

É fato que são formas de escrita completamente diferentes e é até difícil fazer esse tipo de paralelo. Talvez nem mesmo o conteúdo dos dois seja o mesmo em um primeiro olhar, mas o objeto erótico sim. A prosa de Anaïs é muito mais trabalhada em imagens em contraposição ao texto cru de Miller. Não é absurdo nenhum que a representação e o olhar de ambos sejam diferenciados para o mesmo objeto, isso aconteceria provavelmente até mesmo se fossem dois escritores ou duas escritoras diferentes. No entanto, a questão é que o olhar masculino dele é considerado universal e o olhar dela não. Talvez por isso o público de Nin parece mesmo ser mais feminino que masculino – o que poderia explicar em parte o fato de ela ser colocada como uma escritora menor: escreve sobretudo diários, gênero atribuído às mulheres, e escreve sobre erotismo feminino.

Não é razoável pensar que a literatura suplanta uma experiência tão subjetiva como a experiência erótica, que carrega consigo marcas de gênero. É bem pouco provável que um homem consiga representar com precisão, para um público feminino, uma cena com um personagem feminino que não atinge o orgasmo em uma relação heterossexual, mesmo estando tal personagem profundamente imersa em excitação. E antes que possa surgir a colocação de que essa é uma das especificidades que torna um texto literário universal – e então a possibilidade de cânone para a crítica, a literariedade conseguir superar qualquer marca de gênero – é preciso observar que Miller não fez isso, Bukowiski não fez isso, Sade não fez isso, para mencionar apenas alguns nomes da literatura erótica. Talvez Aus den Memorien einer Sängerin – um clássico da literatura erótica alemã – não tenham sido mesmo as memórias da cantora Wilhelmina Schröder-Devrient, mas é pouco provável que seja um texto forjado por um homem, como alguns pretendem. É perfeitamente possível concordar com Apollinaire – que afirmou que, se não forem dela as memórias, certamente o são de outra mulher –, não necessariamente por seu argumento, de que há muito da psicologia feminina, mas porque há muito da sexualidade feminina, de como a mulher vive a experiência erótica, que se difere da experiência masculina.

Anaïs Nin buscou em sua vida íntima um autoconhecimento através da experiência erótico-amorosa. E aqui é importante especificar a qualificação amorosa, porque, para ela, toda experiência erótica era acompanhada de uma vivência amorosa; o sexo estava sempre impregnado de alguma forma de amor, ainda que fosse um sexo de momento. Em um de seus diários, Fogo, ela conta toda a dificuldade de atingir o orgasmo com um de seus amantes, mesmo estando completamente apaixonada por ele. Também no romance Uma espiã na casa do amor, a personagem Sabina tem essa mesma vivência frustrante, que é muito conhecida dentro do universo feminino. Este é um exemplo palpável da experiência sexual das mulheres: amando ou não o parceiro, é relativamente comum não se atingir o ápice da excitação sexual. O mesmo não parece ser corriqueiro no universo das experiências eróticas masculinas. Anaïs aborda bastante este tema, explorando as causas psicológicas e sociais que retém o gozo feminino.

A voz de Nin teve problemas não só com a crítica literária, por uma suposta falta de riqueza estética no trabalho com o tema erótico, mas também com o movimento feminista da década de 60, período de publicação de seus diários não expurgados. Com o debate sobre o direito da mulher de ter o controle de métodos contraceptivos, a partir da criação da pílula anticoncepcional e da discussão sobre o aborto, a escritora, que abordava o tema da liberdade sexual feminina em sua obra ficcional e não-ficcional, estava inserida nesse contexto. No entanto, Anaïs era criticada pelas militantes por não ter politizado seu trabalho literário. Embora ela tenha feito palestras direcionadas às feministas, ela também não foi aceita pelo movimento da época, acusada de ter se preocupado exclusivamente consigo mesma e não com a mulher como um coletivo. Todavia, Nin acreditava que sua obra era relevante a outras mulheres porque trata dos entraves que não permitem as mulheres libertarem-se sexualmente. Então, de fato, ela nunca assumiu uma posição militante nem nunca falou às mulheres, falou de si, como mulher e todos os obstáculos que precisou ultrapassar em busca de sua liberdade.

Seus diários são cheios de contradições justamente porque sua persona constrói-se ao longo da escrita. Anaïs dizia que seu diário era seu espelho, era seu lugar de reflexão e de construção de si. Se não teve uma postura explicitamente política, em termos de coletivo, suas atitudes em busca de superação das barreiras patriarcais não podem ser desconsideradas.

A escritora estudou psicanálise com seu analista, depois amante, Otto Rank e chegou até mesmo a ter uma clientela de analisados em Nova Iorque. Toda sua escrita é permeada por reflexões psicanalíticas. Seus diários registram uma busca de si mesma através da experiência erótico-amorosa costurada pela psicanálise. A personagem Sabina tem muito de Nin com seus amantes, cada um suprindo algo de seus eus – um é o pai; outro é o filho; outro é o amante; outro é desenvolvimento intelectual; outro, a chama criativa. Às vezes, um engloba mais de um aspecto; outras vezes, já não é mais nada. Sua vida amorosa é um mergulho em si por meio de sua relação com o outro.

Em Fogo, ela afirma não estar preocupada com o fato de escrever os diários – Miller dizia-lhe que os diários eram ótimos, mas faziam escoar sua criatividade, que, enquanto ela alimentasse os diários, ela não escreveria um romance. Mas Nin criava nos diários. Não é possível saber em absoluto o que foi mesmo real na vida íntima dela. Anaïs criava o tempo todo. Reescrevia-se. Mentia para todos os seus amantes, alegando para si mesma que era a única forma de explorar a si sem magoar os que amava. Ela passava os diários a limpo, mexia nos textos, recriava suas experiências, embelezava a escrita, explorava declaradamente o gênero diário e, sobretudo, refletia sobre a verdade dele, uma vez que acreditava que depois seria lido.

A pretensa pequenez de Anaïs Nin é na verdade sua grandeza. Ela borrou a fronteira entre ficção e não-ficção magistralmente. Nin dizia querer ser a obra de arte em si. E ela é. Se por um lado pode-se dizer que seus textos ficcionais são cheios de elementos autobiográficos, pode-se, perfeitamente, afirmar que seus diários são permeados de elementos ficcionais. Não é possível confiar integralmente em Anaïs Nin. Ela ficcionalizou suas experiências, sua persona, criou-se literariamente em seus diários e deixou aflorar em seus romances e contos suas experiências reais da construção de si mesma, uma mulher livre, como ela entendia possível dentro de sua realidade.

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Renata de Castro
 é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.