|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
são muitos, e ao mesmo tempo. cheios da veemência que os torna ocos por inteiro, ou tanto. poucos na destreza que afina as cordas para ocupar as linhas de baixo daquela banda formada no inverno. mas a música, ela insiste. e a gente faz quase um assobio da melodia que recupera a projeção interna dos sopros, como os que derrubaram as casas de palha e de madeira. pela cozinha se segura o tranco. bora então mandar aquele groove, improvisando uns solos. de repente, a ideia de homem vá pro forno e se converta em quentura. das possíveis ou improváveis:
the gingerbread men
“A felicidade é um cobertor quente, Charlie Brown”
traduzindo, com Carla Sanzochi
um homem de papel sentado
ou será que é deitado
em cima
ou será que é debaixo
de uma casa de papel
é a casa
é que é feita de carne
ou é ele
é que é feito de casa
e ele grita
e é porque ele não sabe
sem perder a levada d’os homens biscoito de gengibre (the gingerbread men), cavam-se buracos à procura da relíquia mais preciosa. eh, meu amigo / Charlie Brown, Charlie Brown / se você quiser / vou lhe mostrar / meu Rio de Janeiro / e nosso carnaval. vem correndo com tudo, que ninguém te segura. nem raposa astuta nem corvo na escuta. pula no rio que Heráclito é gente boa. só talvez você pague uns trocados se rolar o canoeiro rumo ao Letes. mas não mergulhe pra ser inédito apenas, nem queira o esquecimento, tampouco o antônimo dos santos que, se bobear, teu glacê vai borrar.
se eu fosse uma coisa presente viveria em linguagem. no entanto sou algo que aqui já não está. uma tradução ou uma transcriação ou uma transluciferação. o lugar do meio. do trânsito. a condução entre um instante e outro, o próprio conduzir até. mas isso também não é ser coisa? o nó cego nos laços do escultor? quem me dera ser gente e andar altivamente desde o centro da língua até o corpúsculo dos olhos, e te olhar de cara aberta pro desvio. porque ser isso que não tem nome é quase como entrar num mar interdito de ancoragem. ainda que se preserve a parceiragem, e que Sanzochi me compreenda, entre gengibre e snoopy há um charlie brown de mundo. oh, good grief.
tentar o limite da palavra no que ela escreve desencava esse circuito movente da tradução – transducere. o espaço altamente condutivo (-ducere) para o entre (trans-) de si mesmo. uma condição tensional na assunção do próprio modo de ser. mas isso tudo não é linguagem? esse estatuto quântico em ocupar lugares simultaneamente? ser casa e carne. papel e homem. palavra e dúvida?! e não para por aí porque rumo ao critério ontológico, entre sentar e deitar, o ser chegou primeiro e se ocupou de sua consumação na quietude. então, já que tô metido, lembro que sentar vem do latim sedere, dando origem em português à palavra ser, que num sentido amplo pode até significar o recolhimento no repouso de si mesmo. alô, Lakshmi!
não dá pra saber se é em cima ou debaixo da casa o contraponto da levada. no swingado dessa morada, cabe o trâmite da transfiguração. toma-se o ente da mutação material. “um homem de papel” se confunde com a instância. torna-se a estância onde se afigura “uma casa de papel”. tal como ele. compartilha-se, então, do mesmo pão nessa ceia improvisada. num quê snoopyano, estar deitado em cima do telhado equaciona o pleno estado de nirvana. com seus quatro acordes, não tem smells like teen spirit que dê conta. é preciso descer e continuar a andança: “a casa / é que é feita de carne / ou é ele / é que é feito de casa”.
pelas materialidades com as quais se mantêm a escala, o cromatismo valoriza as palhetadas alternadas do poema. entre casa e homem há a carne. entre carne e casa há o homem. [mal sabe ele que foi assado a 1800 graus]. se navegar for mesmo preciso, que corra para além das cãibras. a alternância em que o corpo se propaga induz ao andamento multifônico. fala-se então de uma escrita abreviativa da simplicidade. talvez a tríade que amarra essa fábula esteja além e ainda mais. conjuga-se nisso um compasso composto entre casa, carne e homem. um arquipélago ternário.
não há metáfora que compreenda o nexo total das comparações. o complexo jogo das intervenções se acirra no duelo das fábulas. um misto entre animais e gengibre. o papel na corporeidade entre casa e homem elabora um rascunho de Escher. “e ele grita”. grita na extravasão da voz emendando uma ária para repentes. penetra com força a língua nessa garganta e pula uma, duas, três, quatro vezes até talvez fazer ruir no outro lado do mundo o monumento erguido para quem atirar a primeira pedra. e ele atira. “e é porque que ele não sabe”. quanto mais atira, mais grita. se a felicidade é coisa que se cultiva na quentura do cobertor, então Linus van Pelt tinha razão.
p.s. publicado no livro A implantação de um trauma e seu sucesso (Patuá, 2019), Ricardo Escudeiro provoca umas afrontas e impõe algo que acredito ser a melhor maneira de se ler um poema. o “the gingerbread men” é apenas um dentre muitos outros poemas de seu trabalho, que exigem do leitor uma leitura com o corpo voltado para várias menções a filmes, músicas, animações etc. digo ser a melhor maneira porque penso serem os poemas universos que se realizam em si e que interagem tanto entre eles num livro (resgatando o sentido de obra, ou seja, do que opera numa realização de presença e mundo) quanto singularmente, propondo eles mesmos uma poética que pode existir apenas no limite (será?) de seus versos, linhas ou construções. na minha tentativa de incorporação poética, trouxe algumas outras referências em meu texto, a fim de não perder tão feio para o poema do Ricardo. que o Minduim me ajude!
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.