|Alguma coisa em mim que eu não entendo
Por Thássio Ferreira
(a cena:)
(no balcão do bar, ela entrega o cartão de consumo ao atendente)
— Um refri, por gentileza.
— Débito ou crédito?
— Crédito.
(pausa)
— O que você pediu mesmo?
— Um refri.
(outra pausa)
— Débito, né?
Esta é a história. A princípio, ao menos. Um diálogo solto, repassado para leitura ainda pingando seus muitos não-ditos, não-ouvidos, não-sabidos. Quem desejar, pode parar de ler aqui.
Ou vamos descascar, ou rechear, esta cena. E caso nunca saibamos se neste exercício de acasos e imaginação chegaremos a nos aproximar de algo que poderia ser chamado de verdade, tanto melhor: em certos momentos, contextos, passatempos, mais vale o prazer de não saber.
(Quem desejar, ainda, pode parar de ler, sim, neste sentido intuitivo e corrente do verbo; porém seguir lendo um seu desnovelo próprio: prazer outro de caminhar no abismo das palavras sem a mão de ninguém)
Digamos que fosse uma noite movimentada naquele bar. Um detalhe a mais, apenas um, e das muitas histórias que esta pode ser, algumas esmaecem, enquanto outras brilham mais intensamente.
A quem rebrilhou mais vividamente o vislumbre de cansaço naquele rapaz, moído por horas, meses, vidas anotando pedidos, um passo à esquerda, por gentileza. Não me digam sobre o rosto que veem, mascarado num sorriso anódino, mas pensem sobre ele. Pensemos. E não esqueçamos, em palmilhando essa vereda, de cultivar algum humor nas histórias dessa história. Senão, periga descambar chatíssima.
Um passo à direita, por sua vez, quem se irritou — duas informações só, porra, e nenhuma delas é a fórmula de Bhaskara! — em catarse e solidariedade muito específicas, e toma a nova informação, não como um mistério a mais na carne do mundo, mas uma confirmação de si — ah lá, pior ainda numa noite movimentada, sem desculpa, sem desculpa! —, numa espumância de convicções de dedos ásperos.
Já para quem cintilou mais — quase com volúpia, aposto — a sugestão de tantas outras gentes ao redor, tantas mais histórias a se entrecruzarem, quem desejou se perder, mais do que explicar, um passo à frente: me dá a mão.
(Quem quiser, pode parar de ler aqui. Bom, em qualquer parte, já está percebido, não?)
Porém, e se acordamos para o inverso: um balcão vazio, quase silêncio (o silêncio raramente é mais que um quase)? Talvez uma chuva ao fundo, lá fora. Haverá quem romantize, sabemos. Quem se repita. Até quem se arrepie em medo, pressupomos, sem que ninguém saiba bem de quê, ao menos ainda. E haverá também, é certo, sempre há, quem se deleite justamente no que ainda pinga: não dito, não escrito, não sabido. Vazio sim, e daí? — perguntam; e emendam: não responda, é justamente o espanto que interessa.
E se eu disser, a quem ainda me lê, seja de mãos dadas na entrega; seja em passo um pouco atrás, como um acanhamento; ou mesmo numa cautelosa distância desconfiada, mas ainda assim, ainda aqui, comigo, e se a você eu disser que:
(sobre como continua(-r) este conto: cartas à redação)
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Thássio Ferreira, escritor radicado no Rio de Janeiro, é autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018 — obra vencedora do i Concurso Literário da editoria universitária). Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Mantém página no Facebook e no Instagram