|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
sabe quando a gente, ainda deitado na cama, meio dormindo, meio acordado, se apega a um rompante e pensa num poema? mas não no poema já escrito, e sim naquele que ainda não existe. daí em diante, as complexidades do mundo parecem convergir para o limbo entre silêncio e risco, quando a gente se detém numas ideias ainda desengonçadas. às vezes, o impacto é tão forte, que dá vontade de querer fazer parar os ecos, e não adianta muito esconder o rosto. mas eles – os ecos –, carregados de sujeiras outras, insistem. então, como um ato suicida, a gente pula, busca a profundidade de tudo que não tem explicação e que pode se tornar matéria de poesia; mesmo que à parte do acordo comum entre leveza e claridade. […] o relógio bate. são onze horas.
onze horas
Hoje comprei um bloco novo.
Pensei: a você o bloco, a você meu oco.
Ao lápis a mão e os pensamentos em coro
Me sugeriam rimas e sons mortos.
Para, coisa. Se oculta, rosto.
Cessa estes ecos porcos,
Esta imundície coxa, este braço torto
Reabre o tapume verde do poço,
Salta dentro, ao negrume tosco
E se nada resta afoga-se no lodo
Para que sobre o resto do nada, o sono.
(Sussurro.) Euvocê.
maio/68
era ainda dia. as gentes passeavam entre mim nas ruas e eu andava como sempre ouço dizer que faço. depois, afeito ao longo braço de instantes, avisei que “hoje comprei um bloco novo”. talvez não fosse necessário dizer, ou fosse só o caso de esperar, como acontece com os lugares onde o sol sempre abre. tal qual uma epifania refeita no peito, as coisas se lançaram para a porventura das coincidências. fatos ou ainda insistência, os equívocos não cessaram. mas, assim seja, no meio dessas roupas largadas no chão, “pensei: a você o bloco, a você meu oco”. de presente, leve aquilo cuja devolução seja imprecisa. a boca de uma estrela nascente a meio palmo do céu.
das doações que fazemos, o estado de entrega seja talvez o mais sagrado. mas a promessa pela oquidão desencadeia alguns engasgos na contravenção das distrações. esse conjunto omisso entre solidez e vazio mostra que o paradoxo nos abençoa, e dizer amém aqui significa o mais intenso modo de sacrilégio. é bom sentir quando o equilíbrio se desfaz a um triz do irreversível. então a você, o espesso, um pedaço inteiro desse conjunto inominável. a você, o miolo, o longo modo de guardar na boca o vácuo até o estômago.
como numa confissão, em que o pecador espera pela penitência, guardo o embrulho da ansiedade e a esperança pela renovação. o santo sacramento para se pôr em prática o que a gente não acredita do próprio segredo é agora o que se revela entre alguns sonetos e outros tantos terços, rezados na contramão de quem divide o pão. desembesto a aumentar o quanto que de mim é outro. as curvas, os cantos. as aspas e travessões. a ficção presente na criação do próprio nome e sua aprendizagem. escrever decerto seja um pouco isso, “ao lápis a mão e os pensamentos em coro / me sugeriam rimas e sons mortos” enquanto se guardavam os futuros caminhos dum poema estranho.
o alento pelo próximo verso, um vício. a sugestão da imagem seguinte, quem sabe, a cura dessa onda que não segura a maquinaria avessa da sintaxe, e perdura até não aguentar mais nenhuma coação. mesmo que a mão desenhe livre o labirinto de algumas vozes, o poema carrega na prole futura a tendência para esconder alguns sonambulismos. a hora se alonga, café no copo, a postura intacta de quem enganou meio mundo com a história fajuta de um tal eu-lírico. a pressão por satisfazer algumas lembranças elabora a coluna transcendental de uma verdade. mas, não. “para, coisa. se oculta, rosto” enquanto desembainho a sensação da hora muito bem planejada. no espetáculo do susto, vem a linha dura do caso perdido onde as coisas morrem sem aviso, e eu percebo virtudes na cara enterrada entre os joelhos.
algumas perturbações, olhos no teto, o corpo em simbiose com a metáfora acrílica das paredes. eu aqui na cama, besuntado de repetições. os ecos chegam ao sinônimo da sujeira até o texto. vem tudo: lembranças, saudades, ruídos. a vontade mais clichê do mundo em se fazer um poema de amor com todas aquelas imagens de filmes da sessão da tarde. também pudera, cresci assistindo a essa melancolia ordinária. lembro de Drummond ensinando a não fazer versos sobre acontecimentos; de Manoel de Barros com seu Pantanal inventado, e muita gente achando que ele falava da natureza quando era na linguagem em que ele se ancorava; de Kenneth Koch escrevendo sobre a necessidade de um poema nos tornar uma pessoa melhor ao escrevê-lo, quando o poema deve dizer algo que desconhecemos, antes de sentarmos para escrevê-lo.
lembro disso tudo e do que não consigo distinguir entre recordações imaginadas ou acontecimentos desleais, algo muito farto no convívio com as letras. mas que diferença faz, se tudo que perpassa o corpo é vivo e real? o lápis rodeando figuras, quase uma arquitetura, até que “cessa estes ecos porcos, / Esta imundície coxa, este braço torto”. ele – o braço – reage e vai ao ícone da profundidade: o poço, revalidado através do tapume verde. pela trama dos pedaços com que um texto inicialmente se mantém, jogam-se fora as escadas e seus cadafalsos. a procura pela vertigem como além-céu das tempestades em avaria disfarça o pouso em tessituras experimentais, até que fatalmente “Salta dentro, ao negrume tosco”.
nenhuma terapia me diria o exato instante da perda ou a falha com que pintamos os desejos. exigir resposta é para quem toma vinho de rodinhas, porque escrever tem desses homicídios. a gente nunca se satisfaz com o corpo estirado na página, esperando dele uma trilogia de macabéas ensandecidas. engraçado é se atrever ao escuro mais que escuro. não basta extinguir o palmo invisível aos olhos até o fundo do poço, é necessário a tosqueira, o cru material que vai verso a verso nessas linhas coxas. o relógio marca a disposição em se registrar o esforço por mais algumas profundidades. olhar para o estado escuro bem abaixo do que os pés procuram, tateando talvez o destino faltoso das unhas.
daqui em diante o tranco na partida quebra algumas receitas pré-cozidas, embaladas e prontas para o uso. se nada resta, adeus. é nonada e ponto final, sem qualquer pretensão sertaneja. se não rola e não dá, “afoga-se no lodo / Para que sobre o resto do nada, o sono”. o poema já era. ou não. o poema é agora. esse aqui mesmo, que faz uma horda nos bricabraques das composições, nas leituras. quase mais nada que muito é o resto que sobra sobre aquilo que ainda não foi feito. a diligência pela indecisão de um tema põe a perder o incesto com o filho do verbo. nada é mais agora do que quando; e se dorme muito bem, obrigado, ao se permitir que diante do estado lato das coisas permaneça o fundo no poço acima das lhufas. mas vem quieto, que te lanço um fatality ao pé do ouvido até que o sussurro se faça mais breve, e “Euvocê” sejamos um compacto de 45 rotações por minuto, tocado até antes de as onze horas acabarem nesse maio de 68.
p.s. gosto de quando o texto soa como aquela pessoa que nunca vimos, mas morremos de saudades dela. os poemas de Ana Cristina Cesar [ou solamente Ana C.] têm isso, acho. te colocam na sala, batendo um papo, mas, ao mesmo tempo, não te dizem muito. provocam curiosidade por aquele detalhe omitido ou por aquela cena super aberta, já que a exposição também é guardadora de mistérios. nessa minha ideia de ler com o corpo cheio de alma, senti saudades da Ana, como se a gente fosse se ver amanhã depois do trabalho (ainda bem que ela não sabe dessa história toda de quarentena, pandemia, covid, bolsonaro e toda essa gente ruminante aí afora). é isso, fiquei com saudade, um certo vazio no peito… e quase já ia me esquecendo de dizer que o poema “onze horas”, de Ana C., foi publicado primeiro no livro póstumo inéditos e dispersos: poesia/prosa (São Paulo: Editora Brasiliense, 1985) – lembrando que ela nos deixou em 29 de outubro de 1983 –, e posteriormente reunido em Poética (São Paulo: Companhia das Letras, 2013). feliz e estranhamente sinto que por mais longevidades usadas na leitura de um poema, ele é sempre mais que a gente. que bom! com essa saudade estranha, lugares foram revisitados aqui dentro.
_______________________
Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.