A LÍNGUA MAIS LÍNGUA DE HERBERTO HELDER – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

afia a língua com a batalha da palavra nos veios semânticos da sintaxe. a síntese. a paráfrase. a tradução. a lâmina orgulhosa da genuína cegueira. carrega no corpo brilhoso da chapa a longeva conjugação verbal, que falha. afia a faca no fio que leva à ironia da navalha. o que se corta não se reparte. o que se corta entra para mais dentro da pele numa sutura carregada de pontes. a faca não extirpa, não põe pra fora a excesso do passo. não é como se queria. e eu só desejo o cotidiano ordinário da boca neste poema de Herberto Helder:

a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retomada do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu a amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca,
¡que língua,
que húmida, muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita,
e la poésie, c’est quand le quotidien devient extraordinaire, e que música,
que despropósito, que língua língua,
disse Maurice Lefèvre, e como rebenta com a boca!
queria-a toda

por dentro de cada palavra encontro um gesto anômalo. procuro uma acomodação a tiracolo, uma desculpa para interferir na dosagem salina dos oceanos. não adianta tramar contra o rumor das ondas quando se destaca no sangue o sabor de uma frase. importante anotar: o mais intenso desejo de um suicida não é a morte, e sim o fracasso da ferida que não encontra veia suficientemente escrita. a faca não aparta o fogo, não decepa a água ante a insistência da pergunta: “e quem não queria uma língua dentro da própria língua?”

a obscenidade das falas se penetrando devora minha vontade por saliência. “eu sim queria” agora ser um poema que fizesse tremer a formação dos mundos e reter na ponta de uma ironia a tradução impossível dos verbos. mas não há limites. há casos de mergulhos profundos, pois “no mundo há poucos fenómenos do fogo, / água há pouca, / mas a língua”… a língua… encontro no seu reverso o sentido inteiro dos laços. sem etimologia que refaça o caminho de um tal vocábulo gerado na boca, é o poema o fogo que queima a roupa esquecida em algum varal da língua.

não é “como se queria”. a vontade de um verso achado na cesura, no enjambement; e a gente nela se fia, na linguagem que junta inverno e verão sem cerimônia mediante nossos precipícios peridurais. a língua com seus pertences se inflama de nossos corpos. poetas chegam nela, com ela, que vão a ela, que tiram a roupa para ela, tão “mais brotada, inerente, incalculável”. quero fazer amor com quem se atrever a ser em mim leitura. ser em mim poema, a cura para os problemas tão bem elaborados ante a futura obsessão dos fios, atados em corpulência estrangeira.

se acalma que a mão vem afagar a estreita costura das linhas. fiar “a estriga e a retomada do nada”. aplainar os ruídos da terra e conformar os seus vazios numa arquitetura de ruas abandonadas. tenho vontade de dizer só mais uma coisa: leve consigo essa nadadura revolta. leve junto a escolta, a cisma em pretender colher vestígios entre o abrir e fechar das fianças. amarre com um nó bem cego os cordéis da “bárbara maravilha” e seus fenômenos. e te digo ainda: a gente se perde ao tentar desculpas para mais um modo de amolar lâminas, “porque no mundo há pouco fogo a cortar / e a água cortada é pouca”.

chega perto e sente seus tantos destinos. a língua tão “húmida, muda, miúda, relativa, absoluta”, assim como tão repleta de reveses, “e que pouca, incrível, muita”. ninguém tem coragem de se despir diante de suas conjunções; também tantos advérbios para compor labirintos numa sinfônica de subordinações. mesmo que eu não saiba o quanto do meu nome está imerso no dilema das palavras, tão sinceras em suas intensidades, acato o súbito relato das janelas ao sol e digo já sem pálpebras “la poésie, c’est quand le quotidien devient extraordinaire”. digo e repito: a poesia é isso que na vida é além da vida. a vida – ela mesma – sem dar conta de suas superlativas alforrias.

dizer com sua voz a voz do outro talvez seja aquilo que se chama tradução. o lefèvre tão helderiano deste poema/realidade ganha ainda uns contornos pessanhentos, e assim a língua vai se tornando ainda mais ela, ainda mais outra, ainda mais qualquer coisa que enterre no fundo da palavra liturgia os avanços peristálticos da linguagem. os sobressaltos na gagueira do indivíduo come a própria dicção enquanto a articula. essa “língua língua”, um tal despropósito que “rebenta com a boca” nas surubas odontofraseológicas, esquecidas em meio a tantos ditados copiados do colega ao lado. é desse jeito que eu quero. o falante incorrigível das normas erradas do idioma se reparte inteiro em tantos sinônimos, incontáveis esteiros navegados por quem se permite dançar mesmo imóvel. tão tomado pela língua, quero. quero-a sem sobra alguma ou com todas as bordas desse autorretrato.

p.s. eu confesso: gosto de poemas que tratem da língua, que desencadeiam a si próprios numa artesania poemática autoestruturante ou desarticulante dos sinais orgânicos do verso. também chamam isso de metalinguagem, e a gente inventa dizer algo como metapoematura. essa articulação significa apropriar-se da língua. realizá-la durante a fala. ser palavra viva, cheia de carne e afetos. acredito que Herberto Helder venha nessa dinâmica, que proponha um lugar mais ao sol ante a ventania de tantas determinações linguísticas, normativas. o bom das regras é o clichê de quebrá-las, mas isso já foi muito dito. então, risco mesmo talvez seja trazer para dentro do regulatório o exercício da incorporação, mais ou menos como a poesia do Herberto faz, e aqui, no caso, estou me referindo ao poema que dá nome a um de seus livros – “a faca não corta o fogo” –, posteriormente reunido em Poemas Completos (Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2016). portanto, sejamos íntimos, chamemos a língua pelo primeiro nome, porque ela nos é. e nós a somos.

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Fábio Pessanha
 (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.