|SIBILA
Por Renata de Castro
Em 2016, em alguma postagem das redes sociais, a capa e a contracapa de um livro me chamaram a atenção. Era a ilustração de uma figura feminina, maquiada com corações nas bochechas, sobrancelhas muito finas, vestida com um collant de corpo inteiro, sobreposto por um calção e segurando um modelo clássico de halteres de competição: um halterofilista feminino. Minha reação imediata foi um sorriso pelo que interpretei como um deboche dos papéis de gênero. O título do livro é Heroínas, de autoria de Claude Cahun. Não me foi possível saber, naquele momento, se o desenho era apenas uma capa, se era um autor ou autora, mas o título era-me convidativo. O livro é uma tradução que tinha acabado de ser lançada no Brasil.
Quando Heroínas chegou até mim, descobri que a capa e a contracapa são ilustrações de uma foto da escritora, atriz, fotógrafa, esteta, ensaísta, poeta, ativista, crítica literária, surrealista, artista plástica, e certamente mais algumas coisas, Lucy Schwob. Este é seu nome de registro, recebido em seu nascimento em 1894. No entanto, dentre alguns dos pseudônimos que usava, escolheu, em 1917, adotar Claude Cahun. A escolha do nome tem relação com a foto mencionada anteriormente – embora hoje se saiba um outro motivo de ordem afetiva. Em francês, Claude é um nome que pode ser feminino ou masculino e toda produção artística de Cahun, desde seus escritos às fotomontagens, passa pela discussão dos papéis de gênero.
Há quase um século, em 1930, escreveu em sua obra Aveux non avenus: Masculin? Féminin? Mais ça dépend des cas. Neutre est le seul genre qui me convienne toujours [Masculino? Feminino? Depende do caso. O único gênero que me convém sempre é o neutro]. Com este posicionamento bem demarcado, Cahun antecipou toda uma discussão atual sobre performatividade, não-binarismo e teoria Queer. E é por isso que, em uma busca rápida na internet, é possível ver mais seu nome entre quem discute tais temas que entre quem discute literatura.
Com sua companheira de toda a vida, Suzanne Malherbe – que também adotou outro nome, Marcel Moore – Cahun explorou artisticamente o terceiro gênero, que nela era visto então como um travestir-se de homem homossexual, dado que ainda não havia uma discussão sobre pessoas transgênero. Seu primeiro texto data de 1914, Les Jeux uraniens, nunca publicado, narrado em primeira pessoa, no masculino, considerado semiautobiográfico. O termo ‘uraniano’ tem uso clássico para questões que se referem à homossexualidade masculina, o que favorece a hipótese de alguns pesquisadores de que Cahun identificava-se mais com o gênero masculino que com o feminino. Sabe-se que durante o período em que estudou na Inglaterra, Cahun teve acesso a textos sobre sexologia e psicanálise. Em 1929, ela traduziu para o francês Woman in Society, de Havelock Ellis, livro que incluía entre seus temas a possibilidade da existência de um terceiro sexo.
Claude Cahun teve uma robusta formação intelectual. Estudou em um internato inglês, preservando-se do antissemitismo que marcou a França no final do século XIX e início do século XX. Posteriormente, estudou em Oxford e cursou filosofia e literatura na Sorbonne entre 1917 e 1918.
Em 1932, seu ativismo político a levou a ser membro de l’Association des écrivains et artistes révolutionnaires (AEAR) [Associação de escritores e artistas revolucionários]. Neste período, aproximou-se de André Breton e George Bataille. Com eles, participou da fundação da revista Contre-Attaque três anos depois. Apesar dessa aproximação, Breton, abertamente homofóbico, não gostava do comportamento de Claude, dizia ser francamente homossexual quando ela ia aos encontros do grupo surrealista como um dândi.
O trabalho artístico de Claude Cahun fugia totalmente as representações sensuais femininas do surrealismo e ela não teve nenhuma de suas obras em exposições do movimento. Para a especialista francesa em história da arte produzida por mulheres e por mulheres lésbicas Marie-Jo Bonnet, Cahun apagou em si, ao adotar o neutro, seu lesbianismo, não admitido no movimento surrealista. Com isso, também ficou distante das feministas lésbicas, como Adrienne Monnier, dona de uma pequena editora, que não atendeu ao pedido de Cahun para publicar Aveux non avenus. Para a historiadora, a artista, aparentemente, ficou sem identidade e talvez por isso ela tenha se mudado com Marcel para a ilha de Jersey, em 1937, e lá se isolado.
Depois da segunda guerra mundial, Cahun ficou totalmente esquecida, e só foi reaparecer na década de 90, quase trinta anos depois de sua morte, resgatada por François Leperlier. Em 2015, sua cidade natal, Nantes, trouxe a público obras e documentos sobre Claude. Ainda que tenha escrito literatura, hoje sua produção de autorretratos tem um maior destaque. Perdeu-se muito de sua obra, criada sempre em colaboração com sua companheira, durante a prisão de ambas pela Gestapo, em 1944, por terem trabalhado ativamente com o movimento de resistência. Durante quase um ano que estiveram presas, a polícia nazista fez buscas em sua casa e destruiu muita coisa. Libertadas, Claude, com a saúde frágil, continuou na ilha de Jersey, sendo cuidada por Marcel, até sua morte em 1954.
Cahun publicou diversos textos em revistas e jornais entre 1920 e 1940, como seus poemas em prosa Vues et visions no Mercure de France. Ser filha do diretor do periódico Le Phare de la Loire permitiu-lhe acesso ao meio editorial. Embora tenha publicado em vida quase todos os textos coletados em Heroínas, a reunião deles como livro, é uma obra póstuma.
As heroínas de Cahun são todas personagens femininas dos contos de fadas, da cultura clássica ou ainda judaico-cristã. Ela as desloca de seus papéis sacramentados de virgens, ingênuas, doces, contidas, recatadas etc. e incita no leitor um novo olhar.
Em A provocadora (Penélope, a irresoluta), por exemplo, Penélope, narradora-personagem, não se guarda anos a fio à espera de Ulisses:
Ulisses saberá de tudo, mas fingirá ignorar. – Não confunda Ulisses com Menelau. – O quê! Vou me calar para não macular sua glória mal adquirida? Ah, se eu pudesse contaminá-la tão facilmente quanto seu leito! Queimar seus louros, queimá-los ainda verdes – prazer de mulher!… Mas ele saberá guardar os seus em segurança. Raposa trapaceira! Ele irá exaltar sua tão casta esposa, a quem irá violar frouxamente por trás – fazendo-a gritar por entre os muros espessos. (p.36-37)
É colocada em destaque, neste trecho, certa honra masculina via honra feminina, mesmo não sendo real na intimidade e a qual apenas ele, como esposo, pode então violentar. A autora não deixa de fora o fato de Ulisses ter passado tempo bastante com Calipso – mencionado anteriormente dentro da narrativa –, o que chama a atenção para a permissividade de padrões de comportamento sexual masculino diferenciados dos padrões femininos. No entanto, há uma reconstrução de Ulisses, à medida que a autora reconstrói Penélope.
Há dois perfis masculinos nesse excerto, Ulisses e Menelau. A referência a este último é a clássica, do homem que começou a guerra de Tróia em razão do rapto de Helena. Neste conto, os dois reis mantêm, ou buscam manter, suas honras “usurpadas” por meio das aparências, seja pela guerra ou pelo segredo.
Em outro texto, Margarida, irmã incestuosa, a personagem saída originalmente de Fausto, de Goethe, envolve-se sexualmente com seu irmão Valentim. A narradora-personagem começa a narrativa com a seguinte colocação:
Uma mulher que tem lá seus desejos é mesmo um monstro? Será minha culpa? (p.61)
Margarida não se envolve apenas com Valentim, ela deseja qualquer homem que chame sua atenção de alguma maneira. A personagem reivindica o direito ao desejo, à realização dele e morre por isso.
Já em A Bela, a personagem reivindica o direito de não querer um príncipe encantado. Ao perceber, decepcionada, que a Fera não existia mais, dirige-se ao príncipe:
Mas antes de ir embora, eu lhe peço, me dê o endereço de um outro monstro, de um autêntico monstro. (p.73)
Claude Cahun constrói uma Penélope que não é casta, uma Margarida fratricida e incestuosa e uma Bela que rejeita príncipes. Ou seja, ela dessacraliza padrões bem enraizados na cultura ocidental que reserva uma construção bastante romantizada das mulheres.
Se nos autorretratos Cahun explorou bastante o neutro, o terceiro gênero ou a androginia, em Heroínas, ela se dedica sobretudo a mulheres heterossexuais – incluindo Safo, a incompreendida e Salmacis, a sufragista, ainda que sejam mais complexas as sexualidades nelas representadas. Com estes textos, a crítica feita por Marie-Jo Bonnet se perde no que se refere ao apagamento do feminino. No entanto, é preciso concordar com a historiadora sobre a não aceitação do papel imposto à mulher por parte de Cahun – o que pode ser observado também em seu trabalho com os autorretratos, há um movimento de atração e repulsa pela própria imagem, levando-a a experimentações e metamorfoses constantes.
Seus textos são cheios de complexas camadas, o que permite ao leitor mais de uma leitura, e são ricos em questões que eram caras a Cahun. O fato de todos trazerem para o centro da narrativa uma mulher já é, em si, bastante significativo. No entanto, há outras questões, como, por exemplo, em Salomé, a cética, há a discussão da dicotomia – ou não – vida e arte; em A esposa essencial ou a princesa desconhecida, há uma reflexão sobre os aspectos restritivos da nominalização; em Sofia, a simbolista, há uma reflexão sobre o símbolo e a perda do simbolizado, e em Salmacis, a sufragista, a questão da androginia é trabalhada, aparentemente, de modo bastante autobiográfico.
Críticos colocam Claude Cahun como narcisa, por sua obra estar voltada para si mesma e para sua imagem, seja com as fotografias, as fotomontagens ou com os textos permeados de experiências pessoais. Levando isso em consideração, ainda que ela tenha adotado o gênero neutro – ou que hoje talvez ela fosse compreendida como um homem transgênero, o que não faria dela uma lésbica –, e que tenha explorado insistentemente a androginia nos autorretratos, a voz que se insurge em Heroínas é uma voz de mulher que rejeita versões masculinas de Evas, Marias, Penélopes, Helenas, Cinderelas e Belas. Nestes contos, sem dúvida, o ça dépend des cas faz todo sentido, quando entendido por Cahun como necessário, o feminino vinha à tona.
A andrógina, como a própria Claude se denominou, fez de si, de seu corpo, de sua trajetória, de sua voz e de toda sua expressão artística uma provocação ao posto, ou melhor, ao imposto na primeira metade do século em que viveu. Cem anos depois, a provocação persiste.
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Renata de Castro é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.
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BONNET, Marie-Jo. Claude Cahun e Marcel Moore – Um casal literário e artístico dos anos 20 precursor do gênero “neutro”. Tradução Maria Fernanda Vasconcelos de Almeida. Revista Labrys, nº 7, 2019.
CAHUN, Claude. Heroínas. Tradução Daniel Lühmann. Rio de Janeiro: A Bolha, 2016.