A NATUREZA DESTE TEXTO E DE TODOS E TUDO – BRUNO BARROS

|Palimpsesto
Por Bruno Barros

Mas a palavra mais importante da língua tem uma única letra: é. É.
Estou no seu âmago.
Ainda estou.
Estou no centro vivo e mole.
Ainda.
Tremeluz e é elástico.
Quanto ao imprevisível – a próxima frase me é imprevisível. No âmago onde estou, no âmago do É, não faço perguntas. Porque quando é-é. Sou limitada apenas pela minha identidade. Eu, entidade elástica e separada de outros corpos.
Mas vou seguindo. Elástica. É um tal mistério essa floresta onde sobrevivo para ser. Mas agora acho que vai mesmo. Isto é: vou entrar. Quero dizer: no mistério.
Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas.
Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino, Sou-me. Tu te és.

(Água Viva, Clarice Lispector)

 

Diante da potencialidade de um texto literário, é pouco comum que nos entrelacemos com ele em seus processos inatos, dele, como a ele me refiro: uma entidade ou um ente. Alguém – ou algo – munido de significado. Este texto é eu? este texto sou eu? sou eu este texto? ou ainda: sou, eu, texto?

Ao transitar pelos preâmbulos do fazer poético e das poesias intertextuais que a nós chegam por todos os lados, principalmente aquelas que nos inspiram ao texto, trago aqui um viés talvez um pouco cansado – não por sua concretude nos processos metapoéticos ou pela exaustão do seu saber entre aqueles que, e há quem não, fazem-se texto –, já que o texto tem sido objeto de estudo há séculos, e sua relação com o mundo já nos é caducada.

Interrompo o fazer textual para propor, então, dois momentos díspares em minha vida – e nesse momento, o texto é eu, o texto sou eu, eu sou este texto: um primeiro momento em que o texto é a principal forma de manifestação [manifestação] de [de] si [mim], de modo que meu fazer era textual; ele existia, então, como uma entidade intocada por qualquer outra fonte, ao menos imaginava, que não eu. Nos impedimentos que resultam do fazer humano por sobre a face desta Terra, cerceando nossas potencialidades a meros fragmentos daquilo que queremos – embora muitas vezes não possamos – manifestar, a escrita me era libertadora; veja, em nenhum momento fui julgado pelos meus textos, ao contrário do que ocorreu em muitas instituições humanas, como na família – e cito somente essa por saber que cada alma carrega seus carrascos das mais diversas formas.

Dito isso, num segundo momento, o fazer textual é substituído por algo cuja importância equivale e até supera o texto que me sustentava no primeiro instante: a natureza. Descobri-me aficionado por este planeta e pelas coisas que dele e para ele crescem. Quase como um desdobramento de mim, quando o texto outrora houvera ajudado em minha cura, ao negar as instituições humanas e optar pelo ser das potencialidades que eu carregava em mim e pelas quais eu ansiava em longas prosas. Nesse momento, eu era, e o ser, já indiferente à atribuição de valor, encontrou na natureza o ser desinteressado, ser absoluto, ser. É quando o texto deixa de ter valor na construção da identidade humana para perceber-me livre dela.

Assim – ao que tento desesperadamente desassociar o eu deste texto –, talvez um tanto existencialista, trato da inspiração primeira de todo fazer, e de todo falar, e de todo pensar, pois se o mundo a nós se fez visto, foi porque o construímos à nossa imagem. Logo, tal processo, de retornar do texto à natureza, mostra-se contínuo, aparente e risível: o texto que o leitor agora lê carrega em si as significações e as manifestações de todas as escritas que o precederam e de todas as narrativas que precederam a estas, até que se chegue ao princípio único: a ciência e a arte que se mesclaram na construção da linguagem e de sua costura, cujas junções de sons e sentidos levaram aos homens e mulheres, de acordo com suas épocas, a capacidade de narrar a natureza que se movimentava aos seus redores.

Eis, então, a primeira inspiração para este ensaio. Eis, então, a primeira inspiração para todas as narrativas e todas as poesias desde o primeiro momento que, diante do terror eminente da sublime beleza do cosmos, nomeamos o céu, a terra, os deuses e a nós mesmos – que tais quais como o texto, somos o mundo natural que tentamos entender por meio daquilo que contamos e escrevemos para nós mesmos.

A natureza e sua manifestação foram a fonte da qual verteram as narrativas e o texto. Veja, a natureza era o princípio das histórias Yanomamis, quando Omama deu a floresta a seus filhos para que nela vivessem; seus trovões já assumiam a forma de Tupã Tenondé para os Tupi, o trovão primeiro, o som primordial que a todos os outros sons deu forma; o primeiro casamento de todos teria sido o do Sol e da Lua, em que Inti e Quilla, em sua divina união, transformavam o clima em que viviam e sobre o qual narravam os Incas.

Não é preciso afastar-se de casa, não é preciso afastar-se de si mesmo para vivenciar o incrível processo da natureza que, como o canto das aves e o ladrar dos cães, fez-se fala e narrativa, fez-se canto e história, fez-se texto para que, a partir das mulheres e dos homens primeiros, ele tomasse forma e prosperasse, os grandes astros ganhassem nomes e os deuses banhassem-se em milhares deles, em tantos que, hoje, misturam-se nomes e atributos para que incompreendamos o incognoscível da natureza manifesta. Natureza essa que permeia o imaginário de quem se propõe à narrativa, percorrido um longo caminho de fazer-se texto nas mais diversas línguas, nas mais diversas métricas, ao som dos mais diversos instrumentos.

Natureza princípio, que das narrativas alcança sua pluralidade de significados e significâncias na mitologia e torna-se ecumênica no pensamento antigo, de Lao Zi a Platão. Na literatura, o natural é objeto tanto quanto linguagem, o meio que influencia a humanidade e do qual se tiram as metáforas para o próprio cerne humano: em Homero, as terras longínquas e os mares agitados impulsionam e detêm o herói em sua jornada; em Kafka, a fisiologia de um inseto retrata processos psíquicos e emocionais de maneira metafórica e asquerosa; em Craveirinha, o reconhecer-se nos elementos naturais o aproxima de si mesmo, empodera-o, fá-lo pertencer, ser;  em Guimarães, o sertão é um universo próprio por onde passam as vidas e o fazer humano, mas mesmo depois da evolução e da morte, o rio e o sertão permanecem.

Entretanto, é na literatura também que o natural deixa de ser objeto para ser sujeito: a terra de Gonçalves Dias com suas palmeiras e sabiás; Herman Melville traz Moby Dick como uma potestade natural contra a qual está o homem – ela não se faz dele, não está ali para ele, mas é por si só; os gatos e corvos de Edgar Allan Poe que, somados à natureza aterrorizante que ocupa espaços humanos, subjugam a tão vã crença humana de controle; Hermann Hesse trata da iluminação humana não como a descoberta da autovalorização, mas pela destituição de valor próprio, de tal maneira que o rio lentamente destila a experiência humana de Sidarta para equivaler-lhe a si. A natureza alcança sua condição de sujeito na Constituição do Equador, que a qualifica como sujeito de direitos constitucionais e na qual é nomeada Pachamama, fazendo clara menção à Mãe Terra Inca.

Se a partir da natureza construímos a linguagem para a ela nomearmos e nos posicionarmos no mundo, ela agora, pelo texto, é individualizada, de mesmo modo que nós nos individualizamos. Ao mesmo passo, ela se contrapõe a ele. Eis o texto [agora, inundado do natural]. Manifestando-se pela naturalidade de si mesmo, do ser-aí – do existencialismo de Heidegger – muito mais que do fazer-se humanista. Se deixássemos de ser texto, não deixaríamos de ser; contudo, o contrário não se aplica.

Sua cosmologia está toda pautada na constante reforma do mundo construído, como ao aplicar camadas de papéis de parede sobre um muro erigido muito antes de quem o pudesse nomear “muro”. Nessas camadas de papel, inserimos nossas angústias e nossas alegrias, nossos medos e nossas euforias, distinguindo nossos comportamentos, diferenciando o que foi daquilo que será, centralizando a narrativa em nós, naquilo que, talvez, seja a única coisa que realmente nos diferencie de todas as outras formas de vida: nossos arrependimentos e nossas expectativas – passado e futuro, juntos, criam o ambiente para aquilo que [ainda] não é e, não sendo, carrega do natural somente a potencialidade do vir a ser e suas referências.

É no emaranhado do texto que nos individualizamos, que recebemos nomes, que estamos conectados a uma família, que esperançamos o futuro e lembramos o passado, é nele que vivem os mortos e os desejos ganham forma. Quando me lembro que eu sou texto, que o texto sou eu, que o texto é eu, assimilo tudo que conflui para isso. Apesar de seus mais diversos gêneros e mais diversas manifestações – cuja escrita pode, sim, afastar-se de tal modo de quem o escreve que ninguém é o texto e o texto não é ninguém –, o texto está intrinsecamente ligado ao humano que, por sua vez, está intrinsecamente ligado ao natural.

Natural esse que encontra seu limite com a tecnologia, no artificial e no mecânico contrapostos ao orgânico: a inspiração primeira deixa, então, de ser a única fonte para nosso fazer textual. Quando nossa linguagem muda, muda também este mundo.

Logo, volto a fazer deste texto eu para que se [eu] possa esperar [esperançar], diante da crise socioambiental que vivemos, que o texto [que é a natureza] ascenda a natureza [ausência de texto] a sua notabilidade e, lembrando-nos de sermos juntos com ela, encontremos um outro lugar de ser, um lugar que não exija de nossas escritas nos curarmos de quem somos.

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Bruno Barros é entusiasta da língua e da literatura, um autor não publicado que vive do fazer textual como profissão. Aprendeu com Saramago, Hermann Hesse, Cecília Meireles, Drummond, Castro Alves e Fernando Pessoa. Fã de carteirinha das novelas de Alencar. Suas maiores inspirações, entretanto, são as mulheres escritoras, publicadas ou não, de seu círculo: Maria Caroline, Vera Saad, Michelle Suraice e Neotides Benedito.