|Palimpsesto
Por Cinthia Kriemler
Eles vêm como bichos. Guiados pelo cheiro preto e pobre dos corpos vivos que logo serão caças abatidas e atiradas em uma vala comum. Vêm com a noite, como os morcegos-vampiros. Ninguém nota os celulares inesperadamente sem sinal nem os postes de luz subitamente apagados. São 3 horas da madrugada. A hora dos mortos. A hora do capeta.
Quando Jorginho se dá conta de que os sons que chegam aos seus ouvidos chapados não vêm dos animais da noite, é tarde demais. Nem ele, nem Juca Bala, nem Marcelo da Tia, nem Nego Beleza escutaram o ruído intermitente dos rádios do BOPE. Nem viram as viaturas subindo as ruas de faróis apagados. Talvez por causa do barulho ensurdecedor do baile funk. Talvez por causa do crack derrubando as barreiras de alerta nos seus corpos ainda adolescentes brincando de gente grande. Talvez porque os meninos-vigias na entrada do morro já estejam mortos. Porque um caguete torturado ou chantageado ontem revelou onde eles estariam posicionados. Tudo acertado, tudo coordenado. A polícia ataca. Em bando. Ninguém ouve os gambés. Até que o primeiro tiro acerta a testa de Marcelo da Tia. Um olho vermelho jorra entre os dois olhos castanhos estatelados pelo assombro da morte. Outro tiro acerta de raspão o braço esquerdo de Nego Beleza. Depois, o caos. As mãos furiosas de Juca Bala disparam a submetralhadora HK MP-5 para o ar, resgatando o aviso que não foi dado a tempo. A música do baile funk é interrompida. Corre-corre.
Aquartelado nos telhados, nas casas, nos becos, o pequeno exército de soldados do pó tem nítida vantagem numérica sobre os meganhas. Mas é por pouco tempo. Em minutos, uma fileira interminável de camburões sobe as ruas estreitas do morro. Procissão do inferno. Na troca de tiros, os corpos vão se acumulando no asfalto.
Jorginho está puto. Alguma coisa deu errado no seu comando. Justo esta noite em que ele convenceu Rosylayne a trepar com ele. Para dar fim à agonia de se masturbar dia e noite pensando nela, até o caralho ficar ardendo. Esta noite em que ele vai, finalmente, conhecer aquele corpo escondido pela saia abaixo dos joelhos e pela blusa abotoada até o pescoço. Enquanto atira e dá ordens, Jorginho imagina a reação do Pastor Damaceno quando souber que a filha perdeu a virgindade com um marginal. Por um instante, um riso debochado toma conta do seu rosto. Mas logo ele se concentra na guerra que acontece lá fora.
Na igreja do Pastor Damaceno o medo é relativo. Os tiros são estouros conhecidos. Não fosse semana de Páscoa e ninguém estaria lá às três da madrugada para a vigília da Quinta-feira Santa. Mas eles estão protegidos pelo Senhor Jesus. É com esse argumento que Rosylayne convence o pai a levá-la com ele para o culto. Escondida atrás do rosto impassível de filha obediente, a antecipação ansiosa do primeiro encontro com Jorginho.
Mas agora tudo está errado. Ela se desespera. Sabe que Jorginho está ocupado, no comando da operação para defender seu território. Sabe que o BOPE tomou as ruas para destruir quantas vidas puder. Ela precisa ir atrás do seu homem. Para saber se ele está bem.
Pelo caminho, os mortos de olhos abertos a impressionam mais que os outros. Como se ainda espiassem a vida. No céu escuro, as rajadas azuladas das submetralhadoras a distraem. São tão lindas, pensa sem remorso. Jorginho está em casa. Ela sabe. Ele contou pra ela. Mais cedo, nas mensagens que trocaram sobre o encontro daquela noite. Acertaram tudo. Que ela iria com o pai para a igreja. E que diria a ele, pouco tempo depois, que queria voltar para casa. O pai não poderia acompanhá-la, ocupado com o culto e com a vigília. Ela insistiria: É tão perto, não vai acontecer nada! Então, um irmão qualquer perguntaria alguma coisa, e ela aproveitaria o momento de distração do pai para sair sozinha. E iria se encontrar com Jorginho na casa dele. Para a sua primeira noite juntos. Mas ela nem precisou de nada disso. Com a noite de horror acontecendo nas ruas, Damaceno está concentrado nas pessoas dentro da pequena igreja.
A tempestade está forte. Cobrindo de lama as ruas inquietas e os cadáveres imóveis em suas posições grotescas. Rosylayne apressa o passo. Assim que enxerga a casa de Jorginho, corre. Não pensa no tiroteio pesado. Não pensa que um corpo correndo na chuva não tem forma. Não pensa. Sente primeiro uma ardência nas costas. Depois, no peito. Com a terceira bala, no pescoço, cai numa poça de água suja. Morta. Virgem e morta. Como os inocentes. De olhos abertos.
Jorginho comanda o confronto até o amanhecer. Até que os policiais vão embora. Os pneus cantando em retirada falam de uma trégua frágil para uma guerra estúpida.
Jorginho segue com cinco ou seis moleques para as valas de desova que ficam ao lado do campinho de futebol. Ele sabe que os corpos deixados para trás, nas ruas, são apenas afrontas. Nas valas é que se contabiliza o grosso das mortes. Nas valas, os AR-10 que matam os meninos do tráfico nos telhados e nas casas e nos becos são substituídos por pistolas semiautomáticas. Jorginho conhece as Glock.40 usadas para o extermínio covarde à curta distância. Na sua frente, amontoados, 12 corpos ensanguentados.
Nove bróders e três minas, mermão, diz Juca Bala, indiferente.
Seis e meia da manhã. Em casa, o Pastor Damaceno se desespera com a ausência da filha.
Seis e meia da manhã. No fundo de uma vala de desova, Jorginho reconhece o cadáver de Rosylayne.
O urro de bicho ferido faz eco pelo morro, assustando as pessoas. Menos os morcegos-vampiros. Eles agora estão dormindo. Esperando que seja novamente noite para farejar sangue fresco.
_______________________
Cinthia Kriemler é autora de de O sêmen do rinoceronte branco (Patuá. Contos, 2020); Tudo que morde pede socorro (Patuá. Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Patuá. Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Patuá. Romance, 2017) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Patuá. Contos, 2015) — semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Patuá. Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Patuá. Crônicas, 2012). Nasceu no Rio de Janeiro, mas mora em Brasília desde 1969. Graduada em Comunicação Social e Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social pela Universidade de Brasilia, UnB. Participa de antologias de contos e de poemas. Tem textos e poemas publicados em diversas revistas eletrônicas: Mirada Janela, Jornal Cândido, Mallarmargens, Germina, Gazeta de Poesia Inédita, TriploV, Gueto, InComunidade, Vício Velho, SAMIZDAT, Escritoras suicidas, Diversos afins, Philos. Em 2017, organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz pela Editora Penalux. Em prosa, suas referências literárias são Machado de Assis, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, Nelson Rodrigues, Jorge Amado. Em poesia, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Fernando Pessoa, Hilda Hilst, Adélia Prado, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner Andresen.