|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
é do âmbito da realidade a criação ficcional. vale mesmo é o transbordamento de absurdos até chegar à realidade do outro. se alguém acreditar, já era. passa a existir como se nunca tivesse deixado de ser. aqui só trato de verdades, principalmente as mais mentirosas, das mais impossíveis até. a poesia da prosa na porosa textura de uma história muito bem contada causa tanto impacto quanto cheiro de mar em dias nublados. diante desses requisitos, ficamos de testemunhas ao nascimento de um lugar: Jenipará. espaço brotado do centro de todos os centros da floresta.
NOTA DE UM HABITANTE DE JENIPARÁ: Há de se dizer quem somos e nada além da nossa história às margens do rio Jarurema. […] Ao lado da Pedra Grande, na Ponta do Cururu, se construiu nossa história, e ali Jenipará se levantou de pôr em pôr do sol.
cá estamos, ocupantes do núcleo dissonante desse lugar-imagem. histórias se encadeiam para a configuração de um tempo peculiar: espaço de vozes toantes, vidas consagradas ante a projeção de raízes. as folhas trazem em seu corpo o destino de quem as pegar. dizem que quem se atrever a olhar com olhos bem fechados conseguirá enxergar alguns infinitos. são fabulações longevas de proximidades, dessas que faz da narrativa uma respiração. tem a ver com criação – inventada das mais vigentes, acho –, um modo onisciente de presença nos atrasos a serem instalados em quem tem pressa empreendedora.
numa história, cada um são muitos. leitores de uma obra se tornam versos do poema ou personagens do enredo. em Jenipará, para quem quiser ouvir, há um tipo de guia voante entre as árvores: o cricrió. ave refeita nessa maquinação. age num limite entre alguém muito consciente da história narrada e um vivente angustiado à procura de seu bando. tal como você, como eu, como qualquer um que se pergunta por que raios estamos aqui nesse planeta, país, casa, cadeira, chão, sei lá onde… ele cria umas cerziduras até um tanto ambíguas, muito importantes para algumas provocações de leitura. o cricrió trama inquietações desde uma particular onisciência aviária até o relevo de nossos próprios acabamentos, e garganteia frases como: “É que ser é ser, é homem, é bigodeiro, á açu, é urutau, é sendo, é.”
mais do que querer ser um peixe para em teu límpido aquário mergulhar, prefiro ser esse sendo, verbo no gerúndio por não ter começos. existir, parece, é coisa sem medida. embora o aquário fagneriano borbulhe amor em minhas lembranças (sei lá eu por que lembrei disso agora), quero mesmo é ocupar o trânsito inevitável e voar na visão futura do que ainda não houve. ser homem-humano e todas as coisas impossíveis – bigodeiro, açu – a partir da permanência dos modos de habitar. existir estaria mais para um acontecimento, que nem presságio de urutau em noite de lua gigante daria conta. esteja talvez nisso um rascunho destinal:
O destino é um rio desconhecido, às vezes segue em linha reta, às vezes faz curva sinuosa a embaralhar a gente, mas verdade seja dita, ele segue, de seguir.
que as cartomantes mal-intencionadas me desculpem, mas destino é coisa que extrapola margens e não cabe em cartarolário. aquilo do qual quanto mais se foge, mais toma corpo (Édipo que o diga!). portanto, sem que se promulgue uma certeza certeira, o rio dá o papo, e muito bem. de seguir, ele segue se aprofundando em suas águas. desconhecidas, guardam o rasante dos pássaros e outras catástrofes. da nascente à foz, o rio é sempre outro. desempenha sua sina em acolher mergulhos, sacramentos e violências:
Ele, então, falou de purificação, batizado, de banho nas águas da cachoeira. Ela achou estranho, mas consentiu, retirou as roupas e se atirou na água junto com o Padre. Neste gesto, de inocência da menina, foi que o Padre a segurou pelo cabelo, primeiro beijava-a o pescoço, o rosto, os lábios e depois segurou sua intimidade por baixo das águas, avançando com os dedos grossos por dentro da vagina. Ela tentou se desvencilhar, o empurrou com as duas mãos, tentou mordê-lo no ombro, mas o Padre Dias era forte e Moura viu que não escaparia, foi então que se entregou nas águas […].
das águas heraclíticas à terceira margem rosiana, o rio manifesta o universo em seu equilíbrio-desequilíbrio. guarda na ancestralidade dos tempos a gênese do que ainda está para ser. dor e riso se traduzem, mesmo contra a vontade de quem sofre. impossível desatar os atos. de extremos são feitos apenas pensamentos retos. na violação da menina Moura mora a ruptura. os grossos dedos consagrados não só penetraram uma inocência. também abortaram a gravidez dos amanhãs. mas futuro, por ser além de rédeas, escamoteia o tempo e se faz nascer de outros modos. nas águas morreu um nome para despontar uma encantadora de ervas, curadora de males. em sua jornada, segue para a cidade que nasce de pôr em pôr do sol. agora, sob a herança nominal de Morocha, diria ser ela uma transmutação andante. aguardemos.
pela curva sinuosa do tempo, o espaço avança na devoração das horas. voltamos ao lugar de onde daqui nunca saímos. acobertados estamos pela paleta da cidade irrompida no centro mais dentro dos centros da floresta. a Amazônia se recria na escrita tão brumada de Graziela, que já não existe como pessoa. fecundada desde há muito não se sabe quando, entrega-se às palavras e seus desvios. as diferenças conferem unanimidade às falas. ser igual quer dizer morar na ambiguidade do outro. pelo menos assim, desse jeito um tanto cheio de lugarejos, os pertences vão se acomodando no entre-si das gentes. pessoas de muitos cheiros e almas. a cidade se prolonga nelas:
As cores de Jenipará são muitas. A vila crescia, todas as semanas, uma embarcação chegava carregando gente de todos os lados do Brasil, e também de outros países.
dizer ser Jenipará uma metáfora diagonal do Brasil soa um tanto acadêmico, talvez. para além do Lattes, o anseio dos olhos que lá chegam vem acolhido pelo desejo de nascenças. aqueles que fazem de si parte do coro entoado ao longo das vozes se tornam também rios e ruas. são agora travessias e trilhas coabitadas pelo segredo refeito a cada leitura. a cidade erguida pela ficcionalização poética do real rearranja o itinerário de algo que se chama verdade. Jenipará é uma verdade. o encantamento pela reiteração de uma coisa contada e sua confirmação só presta para quem está preso às cegueiras diárias. apenas um mergulho de rio abençoa a contemplação das horas ante a criação da paisagem mais céu que viragem. eu nunca pulei nu no rio. nem conheço o ciclo das cheias. mesmo assim, fiquei transitado pela necessidade de combater quem faz das árvores destroços. urgência que uma obra pode desencadear ao tornar o grito verde dos seres mais alto que motosserras raivosas. a vila cresce pela diversidade das gentes e pelo destino compartilhado entre sonho e dor.
Jenipará constrói e é construída. mas há de haver uma terceira instância, senão tudo acaba em rasa dicotomia. aqui a ideia da contrapartida bilateral é tão ingênua quanto dormir de calça no verão. gosto de defender que a tríade com o silêncio forma um elo com cada um que se entrega às vozes presentes na cidade do ocaso nascente (lembram-se do levantar-se de pôr em pôr do sol? então!). se a gente estender essa convicção para leitura/literatura de modo geral, fica a desconfiança de que talvez assim uma obra se erga: pela comunhão entre o que ela não manifesta aos olhos e a nomeação dos feitos narrativos visíveis no dizer. portanto, toma o dito: é de incorporação que estamos falando. é saber que “Numa curva ao lado esquerdo do rio Jarurema nasceu um pequeno povoado chamado Jenipará”, onde sempre quase estamos desde agora.
p.s. fazia tempo que eu não vinha aqui escrever sobre algo que não fosse poesia. fazia tempo que o tempo não fazia em mim algo muito dentro do que a poesia em mim fazia. fazia tempo que eu pensava a poesia de um lugar até um tanto inalcançável. nem o traje devido tinha quando o convite sobre isso que eu já havia muito fazia se dizia além de algo tão singelamente poesia. isso tudo – ou nem tanto – pra dizer que Jenipará (São Paulo: Reformatório, 2019), de Graziela Brum, é o primeiro romance da trilogia sobre a Amazônia. pra dizer que a Grazi está já escrevendo o segundo! (então, segura, que vem mais pela frente!). pra dizer que o terceiro, um proto-terceiro-romance, já é muito esperado e presente na ausência de algo que ainda nem sei o que é. se romance ou poesia não importa. o que importa é a gente ser tomado, e Jenipará provoca esses nascimentos contínuos e prolongados.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.
Ivan Sitta é artista plástico, desenhista e ilustrador auto-didata. Cursou a Escuela de dibujos y grabados em Buenos Aires, e o Atelier Piratininga em São Paulo. Ilustrou o livro infantil Grilo Ló e a taturana Ana, foi quadrinista do personagem Chininho. Ilustrou as obras Santa Felicidade, Literatura em Preto e Branco, a edição da V Redart, o conto erótico Vermelho Infinito de Carla Cunha, os romances Jenipará de Graziela Brum, A casa das aranhas de Márcia Barbieri e a segunda versão da capa de No fundo do oceano os animais invisíveis de Anita Deak e está trabalhando no novo livro Infantil da escritora Patrícia Noronha. Participou do Luxembourg art Prize 2019. Teve uma de suas obras para o projeto “Viva com Epilepsia”, recebida pelo 1º ministro da Bélgica. Parte do Acervo de uma de suas coleções foi arrematada na galeria Cultura em Curso da Livraria Cultura. Parte do seu acervo encontra-se nos endereços Ivan Sitta Arte e Ivan Sitta Eroticart,