|SIBILA
Por Renata de Castro
Os loucos parecem mais humanos.
Maura Lopes Cançado
Superlativa. Mulher. Louca (?!). Esquecida por décadas, inexistente ao grande público. Escreveu:
Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). (…) Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades – em excesso de liberdade. (…)
Liberdade. Palavra que ecoa em suas variadas dimensões pela obra de Maura Lopes Cançado. Nascida em 1929, em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, viveu alguma liberdade na infância. Alguma, porque a liberdade da qual gozou foi a de ser mimada pelos pais e de não ter limites para suas vontades. Alguma, porque não se via livre da imagem de um deus que lhe era impossível amar:
Amá-lo como, impiedoso e desconhecido, me espionando o dia todo?
Engravidou e casou-se aos quatorze anos de idade, no entanto, escandalizava a sociedade local pela sua ousadia em pilotar o próprio avião. Depois do breve casamento, decidiu retomar os estudos na capital, mas não foi aceita pelos colégios por sua condição de desquitada. Experimentou em forma de discriminação a margem onde sempre sentiu estar. Mudou-se para o Rio de Janeiro, em busca de liberdade – ou de lugar. Durante algum tempo, fez uso até o último centavo da herança deixada pelo pai, com um estilo de vida luxuoso e livre – para alguns, libertino.
Em 1949, por vontade própria, deu início a uma série de internações. Medicação. Eletrochoque. Solitária. Desde pequena, faltava-lhe acesso ao mundo, presa em si mesma na certeza da solidão:
Um existir difícil, vagaroso, o coração escuro como um segredo. Sobretudo a certeza de que estou só. Sinto, e esta sensação não é nova, como se uma parede de vidro me separasse das pessoas, conservando-me à margem e exposta. (…) Porque, mesmo aqui, ainda sou uma marginal.
‘Aqui’ é um dos hospícios onde esteve internada quando escreveu Hospício é deus – Diário I, entre 1959 e 1960:
(…) Será deveras lastimável se este diário for publicado. Não é, absolutamente, um diário íntimo, mas tão apenas o diário de uma hospiciada, sem sentir-se com direito a escrever as enormidades que pensa, suas belezas, suas verdades. Seria verdadeiramente escandaloso meu diário íntimo – até para mim mesma, porquanto sou multivalente, não me reconheço de uma página para outra. (…)”
Publicado cinco anos depois de escrito. Um estudo:
Observo esses casos crônicos aqui dentro e sinto medo: criaturas para as quais mundo é o que gira bem íntimo e oculto, uma coisa nevoenta, turbulosa. (…) A mão trancando o cérebro enquanto voam palavras. Sim, no centro: eu, eu, eu. Quê? – ressoa sonoro e longe. Bem longe: tudo longe (…)
Um diário. Um exercício. Uma análise de suas profundidades, de seus reflexos e espelhamentos, de sua escrita:
(…) O suicídio me parece de fato uma solução. Apesar disso já não me vejo tentada ao suicídio como antes. (…) Mas, e esta falta total? Falta de objetivo, falta de dor, de amor – toda esta ausência? Difícil continuar enganando-me. (…) Prefiro mentir, mentir-me, estou cansada: este vácuo. Nem triste nem alegre; sem esperanças, porque não há o que esperar (amanhã deverei escrever inteiramente diferente, e se me leio não posso reconhecer-me de uma página para outra). (…)
Entre a prisão e a liberdade, buscou um lugar entre o hospício e a criação literária. Um excesso de sensibilidade no olhar:
– Elas não sofriam, dr. A.? Os loucos não sofrem? Não são sensíveis?
– Tão sensíveis que ficaram loucas.
Não encontrou lugar no hospício, não se compreendeu louca. Duvidou. Certa do aprisionamento em si e da inacessibilidade ao outro, ainda que se compartilhe algo.
De novo: o que me assombra na loucura é a eternidade.
Ou: a eternidade é a loucura.
Ser louco para mim é chegar lá.
Onde? – (…) As coisas absolutas, os mundos impenetráveis. Estas mulheres, comemos juntas. Não as conheço. Acaso alguém tocou o abstrato?
Os contos de O sofredor de ver recuperam trechos do diário. Seus textos se entrelaçam, deixam rastros da criação poética. Não é um diário íntimo – ou que assim não quer se dizer. Já criação. Ainda que a experiência tenha sido sentida na carne, sua loucura (?!) convergiu-se para uma literatura que a transcende.
No conto No quadrado de Joana, a estética baseia-se no contraste da rigidez dos ângulos retos e das sinuosidades das curvas. Camadas sobre camadas. O tema que salta aos olhos é a catatonia: a inacessibilidade ao mundo, a impossibilidade de adaptação, o não ajustar-se. Espraia-se para a quebra de um tempo cíclico. A personagem Joana, fechada em sólido muro cinza, inaugura um novo tempo reto, duro, sem língua. Neste novo mundo
Haverá uma nova língua que a dança dos sons talvez esteja impedindo de se formar.
Há uma necessidade de criação de outra língua que dê conta da realidade rija, de pedra de Joana. Antes que ela consiga criá-la.
Antevê-se amassada e, junto a outros ingredientes, aproveitada numa construção.
Aproveitada numa construção da loucura? Ou numa construção literária em que se desenha a quadratura do círculo, na tensão entre reta e curva? União de dimensões irreconciliáveis.
Joana ruiu.
(…) Paira no ar uma palavra nova:
Catatônica
Joana gostaria de medi-la:
CA-TA-TÔ-NI-CA
Uma construção ruída não é desconstrução. É escombro. Joana é lógica, é matemática, sem a sinuosidade da palavra.
Pensa desesperada: será o início da nova língua, agora que estou desmoronada?
Destruída e reconstruída, na realidade externa a ela. Joana é nomeada, classificada, categorizada: catatônica. Nasce na velha língua. E o parir já faz a língua outra.
O tema de No quadrado de Joana é mesmo sobre doença mental? Embora tenha se falado de superação em parte de seus contos dos temas loucura e confessionalidade, tanto um como outro revelam-se veículos para tratar de questões caras à cultura ocidental, como a solidão, a falta de sentido na existência humana e as liberdades social e existencial, sem esquecer do fazer literário e da reflexão sobre a linguagem.
Lopes Cançado teve reconhecimento por seu trabalho na década de 1960, quando publicou os livros. Depois de ter assassinado outra interna, em meio a um surto, passou anos presa em diversos locais por não haver presídio manicomial feminino no país. Contrariando o que muito se diz sobre escrita confessional, mesmo passando por todo tipo de dificuldade, não escreveu mais até sua morte em 1993.
(…) Agora caí na ausência – nenhum sentimento me atinge direto. – É? Pergunto do fundo da minha existência, vaga e sem contornos – Quê? E eu, meu deus, onde estarei na verdade, enquanto as coisas ensurdecem de tamanha falta de som?
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*Autodefinição presente em Hospício é deus.
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Renata de Castro é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.