OS TERREIROS POEMÁTICOS EM DELALVES COSTA – FÁBIO PESSANHA

coluna | palavra : alucinógeno


 

na linguagem nasce o humano e na língua as gentes constroem seu lar. não que isso precise de confirmação adequada ou titulação precisa de alguém comprovado para certezas. nada disso. a língua se mostra nas diretas incorporações diárias de quem fala cheio de saliva e fome. come-se o verbo no deleite de uma palavra concebida desde o quando de seu próprio tempo. por essa referência temporal, dá pra pensar que espaço talvez seja o lance no qual dados são expostos à sorte de sua devoção ao improvável. num poema, as coisas ficam misteriosamente esclarecidas, e tenho dito, já disseram, num poema o que há é incorporação.

subalterno, jaz
dor ancestral, ethos forte
a margear verbo farpado
sádica geografia a cicatriz
o conflito. Aliás, invisível
é a fronteira que o habita.
Apesar percebe-
se fecundo (sol)
a penetrar densas fendas
a pele aflora qual outono
em súbito inverno; parto
que se aquieta não nasce
é docilizada flor
a sangrar ilusão pela raiz

subalterno é o tamanho exato da medida rebaixada ao infame. sob as ordens de quem é menos que o próprio umbigo, mais profundo é o chão onde “jaz / dor ancestral” pela reconquista de sua habitação. estar provido do solo onde se plantam os pés e se desdobra o terreno encorpado de raízes seria outra maneira de dizer o ethos enquanto morada. Heráclito deu a dica há um tempinho, quando colocou na roda o homem e sua condição de margem, enredado no modo poético de extrapolar sua existência; esta que, por si, já diz a ex-posição no aberto do ser: “éthos anthropou daimon” (“a morada do homem, o extraordinário”).[1]

quanto à obscuridade, só existe poeta herméticx para quem quiser explicar o poema. prefiro andar com Hermes – deus das encruzilhadas, a pulsão vigorosa dos entrecaminhos –, nome de onde nasceu tanto a palavra hermético quanto hermeneuta, para pensar que poeta pode ser, talvez seja, de repente, ou não, um tipo de trânsito errático. afinal, arrisco, poesia são caminhos. o poema age na instauração de realidades desde “a cicatriz [d]o conflito”. pela recusa afável ao dilema das palavras, a junção de encruzilhadas performa a nomenclatura do existente: é homem do tempo agoral, “homemporâneo”, que se veste de investiduras para agir conforme o ritmo das danças. o limiar nele insiste: “a fronteira que o habita”.

espantosidade talvez seja o modo de dizer o nascimento inconcluso das horas. o sobressalto pela irrupção na superfície dos termos consagrados. isso tem a ver com a percepção, o jeito de se deixar tomar pelas controvérsias chegantes à pele. a tramitação da luz conquista os ombros da consistência e acontece no poema – filho repentino da agregação. dum imenso “apesar”, torna casca o corpo do morfema ao “penetrar densas fendas”. de ruína em ruína rumina o gesto estreito do repente, e a fala desse enredo vasto segue rumo ao intempestivo claustro: lugar onde “a pele aflora qual outono / em súbito inverno”.

inesperado é o instante de uma imagem. chega, vem com tudo, arrasa a vontade por tragédias. entre outono e inverno mora a duração épica do ínfimo. antes que a folha caia e a chuva a leve, concepções inquietam úteros ante o verso iminente. porque aqui todos os partos são rebentos. no entanto, a gente entende, realidade é a possibilidade do real em se mostrar como é. o que tem nome de contrário deixa a antinomia para integrar a ambiguidade dos ocasos. noite e dia aqui se comprazem assim como “parto / que se aquieta não nasce”. parece ser preciso efervescência para o poema chegar à boca dx poeta, porque no corpo já está há muito mais que existências.

é necessário que se finque o pé onde a lama se incendeia. ou ainda que se lambreque o peito de terra até que a língua amanheça outra. esses modos, quem sabe, sejam itinerários para o adubo corporal das semânticas, a fim de provocar cultivos e deixar o humano nascer frutífero em sua genealogia. violenta é a trama dos opostos, mas “é docilizada a flor / a sangrar ilusão pela raiz”. amansada a desconfiança da flor no ente do tempo agoral – homemporâneo –, este se radicaliza na materialidade do que consome. mais ainda: uma autoassunção apropriante, e a redundância nesse caso é muito perspicaz.

p.s. aqui se travou um ato de incorporação poética a partir do poema “Desfronteiramento”, de Delalves Costa; na verdade, com a terceira parte dele, que está publicado no livro Midiaserável (Patuá, 2020). fazer da língua brinquedo é coisa muito séria e prazerosa, e é assim que a gente brinca com as palavras. nessas brincações, além do poema lido/incorporado/interpretado, um termo dançante e recorrente em outros poemas do trabalho de Delalves apareceu por aqui: “homemporâneo”. nessa mesma ideia aglutinante – que segue o processo joyceano de sobreposição de duas palavras para a criação de uma terceira (as palavras-valise ou palavras-montagem, também muito usadas no romance-ideia Catatau , de Paulo Leminski) –, análogos exemplos são recorrentes em Midiaserável , tais como “homematéria”, “homemúltiplo”, “poerótico”, assim como outras maneiras de explorar a relação sintático-morfológica das palavras, como “mol(dura-imagem)”, desidr(ata-se a flor)”, “cri(atividade)”. o que se chama de hermetismo em poesia, prefiro pensar que está mais para essas aberturas de sentido do que para a incompreensão, o que me faz lembrar de Manoel de Barros quando diz que “poesia não é para compreender mas para incorporar”. sigo, então, nos meus terreiros poemáticos.

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[1] Fragmento 119 de Heráclito, presente no livro Fragmentos: Origem do pensamento (Tempo Brasileiro, 1980), traduzido por Emmanuel Carneiro Leão.

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Fábio Pessanha
 (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.