POEMAS DE CAROLINA BRAGA FERREIRA

Coluna | Palimpsesto


 


Caminhando antes de Cristo

Acima do umbigo duma mulher
um pouco mais acima de seus seios

veja bem

há uma boca-mucosa sanguínea e apocalíptica
palanque de gritos e silêncios quase fúnebres

— pode-se dizer que peito e garganta são atados à voz
ao vibrato de eco, atalho pelo qual Moiras tecem linguagem com cordas de violoncelo

Abaixo do umbigo duma mulher
percorrendo o caminho do ventre que vaza vermelho e sucumbe no papel higiênico

há outra boca assimétrica e molhada pelas lágrimas dos anjos que gozam sentidos
no Céu e na Terra

Nesta ladeira
o deslize roteiro para o massivo pecado-vida
da humanidade

a primeira fresta aberta para fazer nascimento
como as sombras de Platão

era Vida desde antes de Deus, da Morte; ali, tudo que do vermelho viera
era Vida

sombras eram resultantes dos sóis
e sóis
filhos naturalísticos das mãos que tocam — fatalidade desde os tempos de ventos
mundo

[I]

É preciso que seja compreensível
que a mulher possui infinda matéria vivente
com poderes livres
força de vestido florido
perfume masculino sobre a pele, restos em
sangria

E se uma morre nos braços do mundo
ele perde a potência fluida
ainda que lhe fora entregue o adubo-Eva
fazendo florescer campos e embeber mares

a mulher, fundida às raízes das que deram largada ao tempo
eterniza-se em qualquer beira de luz que se fora, que se é

[II]

Duas bocas sagradas
das terras e das águas
rogam pragas sobre o mundano e ordinário soco do homem
dado no miolo do acerto feminino

carregamos todos os símbolos

todos os quadros negros e brancos lavados na pele; permitimos que o Céu Ancestral caia sobre nossos corpos

que a primeira explosão do primeiro sopro de alguma outra sobre nossas carnes e ossos

[III]

Pela última fração do tempo, veja
é permitido que a Maiúscula-Alegorizante-Vida repouse em nós
durante todo o tempo condicionado ao eterno fim.




Linea nigra; três vezes mi mamá

Nasço na ausência clandestina do sangue, na hemorragia de Caesar — e, depois, por mais quarenta e cinco dias, minha mãe sangra uterinamente pelos meus restos

sangra e ama meu corpo escamando, recém-nascido, dando-me forças vitais

A origem da mulher é sanguinária


[I]

Então, madre, dê-me tua mão para que eu aprenda contigo a ser forte nestes becos que me engolem como o fogo do inferno social

e que somem com minha casa, meus vizinhos, meus amigos e meus amores

Tu, que me tiveras num escape menstrual escarlate, no banheiro do trabalho, naquele dia, permitindo-me nascer através de teu sangue-vulcão, vigilante, coagulado e melânico três dias depois

[II]

Não durmo, mãe

Eu, momma, tu hija

eu, mamá, your middle daughter, your middle child

Eu, que nem posso dormir à noite pelo barulho da violência

pois em minha cabeça há um filme sequencial, físico, onde os beijos fazem menos barulho que as sirenes vermelhas e estridentes às três e meia da manhã

[III]

Dê-me tua mão, mãe, para que me ajudes a dormir com a paz entre nós

esta nossa ponte que sobrevivera desde quando tu te tornaste mãe de três, sempre pelas primeiras três vezes, pelos três primeiros fluxos, pelas primeiras três menarcas

a única ponte que sobrevivera e imitara um cordão umbilical que não se dissipa no primeiro dia de luto

nem tampouco na missa de sétimo dia

como última reza, sendo um presságio para o fim do mundo

Tua mão legalizada, que apanha os estigmas de meu peito, de meu triângulo, com duas arestas, o ventre

[IV]

Tu és mãe em todos os idiomas, em todas as línguas, em todos os direitos éticos

e, pela experiência com sangue, tu curas, ainda que morramos pelas mãos másculas

pela experiência com sangue mulíebre, tu morres também.



Pequenos lembretes de amores siameses pós-cirurgia

A mulher só tem pausa na vida para amamentar e fazer dum broto alguém que vá entender de política, dinheiro e impessoalidadeㅤ

porque não dormimos

Nosso único momento de paz é mútuo; o filho que bebe de nós e nós que bebemos do filho

esta fonte, esta correnteza de colostro e sangue

[I]

Dou de meu leite para que beba em meus mamilos rachados enquanto descanso da vida

dou de mim, meu filho, extensão até você, enquanto tu padre tenta me canonizar

— mulher límpida, não plissada

anulando-me o gozo, a felicidade

[II]

E, enquanto de mim lhe dou, filho
descanso clandestinamente
ao lado seuㅤ

descanso de seu pai, tamanho homem corrompido

descanso em meio à fonte nossa, de nossos riachos
— meu choro e o seu

descanso a fim de, mais tarde, acordar da paz para rever o tempo viripotente

correndo

sempre em curso brutal, másculo.



Seus olhos secos não entendem o oceano dos meus; pequenos lembretes de amores siameses pós-cirurgia III

Que não fossem pelas entrelinhas, digo explicitamente que meu motor sanguinário pesa como uma âncora dentro de uma estrutura de sangue, vasos, veias e atada a outros órgãos

e, ainda que o fígado seja o maior órgão interno do corpo e também o mais resistente (embolo a língua no refluxo da palavra), meu coração se regenera, ao lado esquerdo, ao opor-se contra todas as dores que lhe causam contrações

Você me diz que sua missão é sobre nós, mas é um missionário solitário quando sobre nosso amor, enquanto o mundo exerce peso sobre mim, apenas sobre mim, e eu desencarno com o músculo furado

você descansa, à noite, sem esperar pelo dia

Oclusa, estou dolorida e do tamanho de um punho raivoso, cerrado pelos gritos abafados pelo pano molhado de boldo amargo

e o meu coração âncora, onde-lugar carrego todos do mundo, falha à sombra da sobrecarga de amar para ontem, hoje

solitária na linha em que o vejo sem mim em seus olhos.

(A solidão da mulher negra é secular.)



Aguar de portas fechadas

Pela tarde letárgica corre a mesma melancolia da noite
— e penso que não falta-me energia induzida
mas amor transferido
através das pontas dos dedos
como um cego a tatear o tecido de cobrir corpo
à procura dum souvenir
ou um cego a tatear o rosto
a fim de entendê-lo enquanto forma angulosa, face, quadro

[II]

às quinze horas
ainda dia, depois do meio-período de labuta
é o instante da
Santíssima Trindade;

Pai
Filho
Espírito Santo

pela noite soturna
às três horas da manhã
inversão das quinze da tarde
correm o cansaço e a saudade, antevendo o estímulo da manhã, do sol
— e eu careço do toque, do estalo do beijo na testa
das promessas feitas sob as luzes fracas do quarto

[III]

entre três e três
todos os demônios sussurram meu nome
arrancando-me os pulmões e o coração da caixa torácica

entre o Paraíso e o Inferno
encontro-me no meio deles

[a saudade
eu
o pecado]

[IV]

devo clamar a Deus à meia-noite e ao meio-dia
não às três-três
clamar a Deus quando sol e quando lua
antes da soma seis

para que eu saia ilesa de mim.



1933

Minha avó materna negra como hospedeira fiel a este mundo — nele, guerrilheira e andarilha desde os sete anos

devota à casa e à rotina, arrumava as camas, fazia café e à porta de meus bisavós batia pela manhã, levando-lhes a bebida escura e quente

À beira do rio, vovó lavava as roupas, trabalhava nas casas daqueles cujos bolsos de quinhão; na fábrica de conserva de pimenta, trabalhava para, em sua casa, chorar, à noite, com os dedos ardidos de unhas penetradas no alimento em conserva passado adiante

[I]

Com meu tio Nilson no colo, seu irmão mais novo e primeiro laço fraternal prolongado ao materno, domesticava os ares

e depois, como costureira impecável, dedilhava os vestidos e calças e saias e ternos e camisas

porque aprendera, aos 12 anos, com Maria das Dores, minha bisavó, a consertar os contextos de remenda

E dera a minha mãe, que hoje a mim tem, à luz da vida — por causa de minha avó, existo, morrendo diariamente pelas fendas nas quais vivo

[II]

Vovó, até no momento em que se diz para trás, está dentro das convicções íntimas à frente da mulher assumidamente preta

e é a única pessoa que reza pela manhã olhando no relógio do criado-mudo verboso em hora marcada, vinte para seis

A única mulher que reza todos os dias por todos — e digo por todos de olhos colados pela melancolia, e digo por todas nós, de nossa família, que choramos para resistir à secura do lar

a única mulher, minha avó, que conversa com as plantas, ainda que estas não a respondam; a única que morre junto delas, minha avó, quando se vão

A única que pede pela luz, ainda que tenha aprendido a dormir de porta fechada, no escuro abafado



Padecer na alvorada; a morte amanhece cedo

Ponho-me à divisa do abismo de minha cama, no instante-manhã, aos pés da fronteira em que pararam, durante a negritude adentro, todo o tecido de cobrir corpo. Bem quando o sol apresenta-se, de soslaio e clandestinamente, ultrapassando a cortina composta pela proteção de tecido branco e parte fina da renda marfim, sinto que o sumo do dia, até a noite, preencherá minha matéria, tornando-a quase moribunda.

O sol-simulação invasivo, vintage fajuto, postiço, mas fragmento único dentro da disposição dos artefatos do quarto pessoal de guerra; o cubículo, com arestas, dispara movimentação adjacente ao mundo.

Poderia despertar-me um galo com crista absoluta, mas desperta-me a natureza outra que tem hora para gritar ao mundo que acorda; poderia despertar-me um homem com pomo de Adão e sua voz grossa, aos sussurros e amores, dizendo-me, como um presságio, que o dia há de ser bom, mas desperta-me a natureza outra que tem hora para gritar ao mundo que acorda.

Meus pés, mãos e braços adquirem força gradualmente depois da inércia noturna, do formigamento corporal — a carcaça, que se autoflagela dormindo, junto ao desleixo e à licença de quem vive, estarrecido, os dias, as semanas, os meses e os anos de vida na aflição da fadiga.

À noite desfaleço, por horas a fio, nos braços de Morfeu, e nas asas dos anjos que cantam prece, mas igualmente ao seu lado esquerdo, rente às camadas da pele que cobrem o músculo involuntário do tamanho do punho fechado de sua mão.

Despertar, gradualmente, em silêncio, com os olhos colados da melancolia noturna, depois de ir dormir viva e acordar morta.

Despertar.

Fazê-lo como um recém-nascido pós-desaguado do líquido amniótico, como quem acabara de dar entrada à ala de loucos, como quem anda na ponta dos pés para não pisar em solos minados.

Despertar.

Fazê-lo como um faquir resistente em sua cama pontiaguda e com seu corpo, peso-morto, despencado sobre a superfície incerta e mágica.

Despertar, ainda que a morte amanheça cedo conosco.

Semimorta, despertar.

Porque percebo que a aurora abatida conjectura o dia e a mala de caça para que eu não seja comida viva.



Pequenos lembretes de amores siameses pós-cirurgia II

Costuraram-me no parto, homem

ajude-me a limpar, com sabonete propício, esta cicatriz queloidiana de fibrose interna, a cicatriz que fizemos sem saber que seria uma cicatriz apenas em mim

gozar dentro é a promessa dum filho que fizemos juntos quando nos amamos, mas também é o antagonismo de amar, na cama, a dois, e doer-se, depois, na maca, sozinha

levaram-me numa cadeira de rodas pelo corredor da maternidade, como una madre de seios rachados pelo leite-cálice e pela saliva recém-nascida

tenho meu broto chorando no colo, soy una mujer perfectamente feliz, mas onde está, agora, seu sexo sólido para amar uma mulher negra in sangre, de chagas, remendada e ressuscitada pós-parto?



Veja-me, pois toca-me

Os antolhos limitam a visão

– viver nestes solos de raízes azuis me trouxera eles; acima de mim, portanto, sou ungida pelo meu marido, que me rege zelos robóticos

[I]

Bem no estágio geriátrico, você não sabe falar de amor e paixão na mesma linha

não sabe dizer sobre o momento em que a última cabeça de fósforo úmida caíra em suas mãos e você não fora capaz de jogar querosene em qualquer outra parte das cobertas para assistir brilhando a faísca da luz

pois hoje você me troca,

penteia meus cabelos, me esborrifa três vezes o mesmo perfume floral,

mas não me beija na testa, na boca

Me ajuda a calçar as meias de lã no frio, a vestir meus turbantes de estampas no calor, mas não me pergunta se posso queimar minha pele sob a temperatura tropical do Brasil

[II]

Às sextas, vai à feira, mas não me conta sobre dona Maria das Dores, a curandeira

– que a vira, encontrara. Não me traz notícias de que o mundo ainda é mundo, de que ainda é dia de vida, de que o peixe está fresco e pode ser comido como num ensopado de legumes e verduras

pois não sei se sabe, mas resisto

enquanto escova meus dentes, da forma que a dentista lhe ensinara, mas não me pede para sorrir, checando se minha boca está verdadeiramente limpa, pulso para dizer que ainda posso amá-lo como quando aos dezoito anos, à época em que nos conhecemos

E necessito sorrir para quando estiver preocupado com meus dentes – se assim não o fosse, não olharia minha boca hidratada de manteiga de cacau, limpa e cheirando à pasta de menta; não saberia que meus lábios de duas cores ainda existem e podem estalar uma estrela no seu céu da boca, explodir e refazer o mundo com mil promessas, rios e animais

[III]

Que cuida de mim, é verdade

mas tão somente apenas cuida, receoso de que se arrependa quando eu me for, que se esquece de me amar como num último encontro

esquece de me amar propriamente antes que eu me torne adubo-Eva, com tudo beirando à morte

(sempre)

Ainda que cheque meu coração ou respirar tímido, você não me envolve como poderia, uma vez condicionada aos cuidados de quem quer se redimir – aos seus, arrependidos, cuidados arrependidos

ainda que cheque meus batimentos, não me envolve, uma vez condicionada apenas aos cuidados de quem com a culpa anda, não aos de quem ama como se o ontem pudesse voltar, se o hoje pudesse ser infinito e o amanhã finalmente fiel à vontade de me ver encostada na porta da cozinha vendo-o, observando-o ricochetear a colher de chá de açúcar dentro do copo americano de café – eu, aos vinte e quatro anos de idade; você, aos vinte e sete

[IV]

Me ame, sou mulher, preta, Carolina, Angela, Regina, Amina, Laveau, Eva, Pandora, filha, irmã, avó, mãe e a última a ser cuidada de forma inefável, mas indiferente

ou me ame sem referências, como sua dama da noite

(há anos que permaneço numa terra latina por você. Tenho a palavra “saudade”, a única que transmite falta. Há anos que permaneço nesta terra latina por você, pois não sou daqui, sou da África).

_______________________
Carolina Braga Ferreira é artista preta, fotógrafa e escritora. Referencia, pela insistência histórica preta, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Ingrid Morandian, Elisa Lucinda, Iatamyra Rocha Freire, Zizele Ferreira, Cristiane Sobral, Lubi Prates, Jarid Arraes, Djamila Ribeiro e todas as outras que se lançam no tempo que corre, a todo tempo de vida e morte. Pela insistência na história, Carla Diacov, Anna Clara De Vitto, Marisa Tostes Daniel, Roberta Tostes Daniel, Amanda Vital, Júlia Vita, Luana Campos Leal, Mariana Botelho, Thaís Chagas e todas as outras que se lançam no tempo que corre, a todo tempo de vida e morte.