CÁ ESTAMOS. ONDE? – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


 

Primeiro, achamos, ou achei, que tudo se resolveria relativamente rápido. Talvez o estrago fosse grande, o medo certamente era imenso, a incerteza imensurável (e hoje?), mas algo — não exatamente esperança, mais como um apego instintivo aos jeitos que conhecemos, hábito entranhado da velocidade vertiginosa dos dias, recusa (sem nome) ao incerto e seus abismos — nos fazia crer que não duraria.

E cá estamos, em outubro.

Sonhei com Caio Fernando Abreu. Estávamos na sala de uma casa, à noite, sob uma luz dourada. Talvez eu morasse ali. Lembro dele envolto numa coberta, aninhado na poltrona grande (talvez verde?). Mas não lembro sobre o que conversamos. Talvez sobre como conviver com uma pandemia, ele que viveu e não sobreviveu; ele que fez da vulnerabilidade uma coragem, como venho tentando aprender. Vocês conhecem Brené Brown? Procurem os TedTalks e o documentário dela (sim, está na Netflix, esta companheira das tardes e noites na soli dão do quarto). Brown pesquisa a vergonha, o medo e a vulnerabilidade. Esta, da qual tentamos tanto fugir, não é fraqueza, ela nos diz, mas sim a própria matéria da coragem emocional: enfrentar, com inafastável desconforto e inevitáveis fracassos, a incerteza, a exposição, o risco emocional. Só quando abraçamos nossa imperfeição — aceitando que por vezes quebraremos a cara e os dentes em decorrência dela — e arriscamos mostrá-la  a outra pessoa, outras pessoas, também tão imperfeitas, podemos nos conectar verdadeiramente, amar e sermos amados em profundidade. Acho que o Caio sorriria pra ela (afinal, Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual).

Em algum momento desses meses (enquanto Caio me ajudava ao menos a ser sozinho), as pessoas gritavam e cantavam mais das janelas. De um tudo: sambas, forabolsonaro, brigas, às vezes apenas berros catárticos. Ruídos do mundo, mesmo com todo o silêncio maior a tecer o tempo. Vulnerabilidades espalhando-se pelo ar do bairro. Em algum momento, apesar do medo, da distância, devo admitir, me senti assim meio a paz invadiu o meu coração, como na canção de Gil, como aquela grande explosão, uma bomba sobre o Japão, mas o quanto uma bomba pode realmente trazer paz? Não durou muito. Em algum momento, no meio da paz passageira, no meio dos ruídos do mundo, os galos da vizinhança andaram cantando em cronologia enlouquecida, ao meio dia, pela tarde, sob a lua nascendo. Também não durou muito. Nada se resolveu rápido, nada se resolve rápido, quase nunca, mas  como corrente por baixo da superfície quase congelada do tempo, os estranhamentos se sucedem e, cá em outubro, os galos parecem ter encaixado suas vulnerabilidades  — expostas em osso e medo — em algum novo normal que não sei como deixamos nascer.

Este novo normal dói mais que o normal antigo, que já doía pra um caralho, e de normal só tinha a normalização de barbáries que não deveriam se normalizar nunca. Mas antes eu tinha mais esperança. Antes-antes mas também depois-antes desta surreal adaptação, naquele algum momento em que ainda fazíamos panelaços em meio aos galos pra nos revoltar. Em algum momento, logo após o panelaço, aproveitei pra por o lixo reciclável na escada (pequenas civilidades mantidas no tinhoso esforço de combater as barbáries), enquanto o entregador de comida subia. Contávamos o tempo assim, de uns jeitos novos: depois do panelaço, desde a última live do especialista em virologia. Quando abri a porta novamente, o entregador mal me olhou. Parecia ter medo. Não de mim, nem mesmo do vírus. Medo de que eu tivesse medo. Porque sabemos todos, mais ou menos, do que se é capaz movido a medo. Mas se o medo vai doendo cada vez menos, porque nos acostumamos, este acostumar-se vai doendo cada vez mais, e tenho muita dificuldade em abraçar esta vulnerabilidade específica, esta incerteza sobre como agir, como lutar, esta exposição contínua às impotências e covardias minhas e de tantos nós/eles, este risco emocional em meio a tantos riscos maiores de gente que se arrisca pra trazer minha comida e que eu não sei bem como abraçar com a coragem de quem passa do panelaço ao próximo passo.

Qual o próximo passo? A paz abandonou o meu coração, em algum momento, entre galos e cães raivosos. Cá estamos, em outubro. O tempo urge, porém nada é rápido. Ainda não aprendi a mirar no espelho minha vulnerabilidade diante desses tempos que não estancam de explodir nossas esperanças e normalizar os egoísmos, mirar no espelho essa dor e pegá-la com as mãos, a medo, sabendo que dela virão fracassos e inalcances, mas que é preciso pegá-la, é preciso arriscar tocá-la e fazer dela uma coragem, fazer dela uma luta, fazer dela um sonho compartilhado, contra as normalizações novas e antigas, essa pandemia através dos tempos desde sempre.

Esforço-me, torto, feito galos cantando ao meio dia, porque sei que nem Caio nem Brené nem Gil podem me ensinar como transformar esses ais que o mar arrebenta em mim no vento a arrancar os meus pés do chão.

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Thássio Ferreira
, escritor radicado no Rio de Janeiro, é autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018 —  obra vencedora do i Concurso Literário da editoria universitária). Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de LetrasEscamandroGuetoMallarmargensRuído ManifestoGerminaRevista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Mantém página no Facebook e no Instagram