AUTORRETRATO POLIFÔNICO DO CORAÇÃO CANSADO DE MICHAELA V. SCHMAEDEL – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


a ideia de algo singular está no rebolado do que se chama perda. a vitória dos corações cansados. a plena folia da imagem absolvida ante a curvatura anônima dos solfejos. dizer nota por nota a angular esfera das lembranças retoma o espelho e seus apocalipses. olhar para dentro como salto da expectativa afora. um acerto, ou quase, de quando os cacos justificam o mérito das marteladas na espalhafatosa inteireza das metades. reunidos estamos nessa estranheza, talvez, conforme um rascunho – um modelo antônimo entre os fatos. o modo de buscar os olhos no reflexo do que ora é enfado chega a ser uma leveza, dessas que a gente se esforça para catar no abstrato. aqui, uma tentativa de entrar no poema da Michaela v. Schmaedel para dizer um autorretrato.


Autorretrato

Imaginas que, também aqui, no frio absurdo do museu, acompanhada do barulho excessivo das marteladas do andar debaixo, da minha total descrença no mundo, do meu coração cansado, até aqui, ou melhor, também aqui, estou a ver o autorretrato de Lucian Freud e, por qualquer semelhança boba (rugas fundas, olhar parado, cara perplexa), estou a pensar em ti. Teriam então que acabar todas as pinturas de homens tristes para acabar também isto: a lembrança de ti em lugares estapafúrdios.

teria sido também um lugar de distâncias. andar conforme o ritmo dos ecos enquanto cada passada ocupava o frio do museu. há nisso uma noção de copertença, uma propensão a estar lado a lado com quem já nem se sabe quando, apesar de tantas vozes. teria sido o ensaio de um poema sobre memória. a perplexidade por uma estética de arredores, ou da falta de vizinhança. foi assim, e continua. no entreato de batida staccatas, as marteladas tramavam uma tal insistência. imagina o andar debaixo. a luta contra o prego, contra qualquer superfície que, milimetricamente, se oponha à velocidade pesada do ataque. imagina o coração cansado, que a descrença seja – ela própria – o mundo e suas tragédias. 

teria sido o autorretrato de Lucian Freud. teria sido a metafonia translúcida de uma vogal mal colocada. o que torna dramática uma feição de glória entre as rugas fundas, o olhar parado, a cara perplexa. de certo modo, é também uma discussão acerca do lugar. seja pela militância espacial entre um alguém e outro, seja pela temporalidade anímica de quem se perde ao cogitar lembranças quando, até aqui, ou melhor, também aqui, se internalizou uma prosódia da exaustão. teria sido até a cobiça pelo existencialismo nascido na sala do museu, a qual não mais existe. teria sido uma recordação, conforme nela se suscite o coração (cordis) na intrépida viragem entre a coisa (res) e suas derivações, portanto, o que repete e intensifica. eco talvez seja a profundidade de uma projeção cancelada desde a fundação da voz. ou ainda o ritmo cardíaco do silêncio combalido.

teria sido até uma autoficcionalização poética da Michaela v. Schmaedel pela abreviatura, quando Micky Schm comparece à mesma sala de museu e tem os pelos eriçados pelo mesmo frio e, quem sabe, se revolte contra o mesmo barulho excessivo das marteladas do andar debaixo. teria sido uma lembrança desencadeada pelo autorretrato de Lucian Freud, quando o “pensar em ti” se torna estar com tantos outros. então, dentro das possibilidades fundantes de um itinerário poético, qualquer um que passar por este texto, qualquer um que ler até esta linha – sim estou falando com você – terá agora mesmo uma ressonância mnemônica com Lucian Freud, com Michaela v. Schmaedel/Micky Schm, talvez até, não muito, com Fábio Pessanha mediante a composição de algumas imagens. essa tal ressonância pode ser a vibração que aponta para a invenção das lembranças vividas, ainda que não acontecidas. quem sabe, esse gesto escrito trate de um acontecer poético na epopeia da vida de cada um.

todos os homens tristes teriam sido. e suas replicações em pinturas colapsariam. não mais haveria rugas no levante da tinta contra a tela, tampouco a moldura se calaria com tamanha calamidade. não mais haveria o absurdo frio do museu ou as marteladas lá debaixo. mesmo assim, os motivos para o coração cansado ou a total descrença no mundo se refundariam. a renúncia não se realiza pela extinção, ela se radicaliza no que se oferece como possibilidade e simplicidade. todos os homens tristes teriam sido a destruição dos seus autorretratos. pela antinomia dos desejos impossíveis, por mais que Lucian Freud se calasse na exposição de suas autofigurações; por mais que Micky Schm devorasse Michaela v. Schmaedel; por mais que as marteladas insistissem e o frio ruísse as paredes do museu; todos os homens tristes ainda estariam escondidos sob a contingência das pinturas. fundamentados estariam em suas rugas, olhar parado, cara perplexa. devorados estariam pela insistência das lembranças.

teria sido um lugar estapafúrdio se fosse apenas um mergulho cujo fundo estivesse no fim. mas fundo não há. dentro do cansaço, o coração modula o compasso excêntrico do passado. que não houve. que é vindo sempre como presença. que o autorretrato não é de Lucian Freud. ou não apenas. que falar sobre um poema é mais que falar sobre um poema, porque o poema fala desde uma ancestralidade não palpável. ou isso tudo seria apenas uma invenção. uma transfiguração, talvez seja, do que o poema mesmo poderia dizer. que a leitura que você fizer já será um outro tempo, um outro poema. porque o poema mesmo nem mais existe como autorretrato.

p.s. Michaela v. Schmaedel estreou em livro de poesia com seu Coração Cansado (Penalux, 2020), do qual foi extraído cá para nosso espaço palavral-alucinante o poema “Autorretrato”. gosto de pensar que um poema não tem fim e que ele se ramifica em infindáveis leituras. e este momento, este agora da sua leitura, é tão outro quanto o poema. torço para que você divirja, que se perca e de repente também se encontre. porque poemas são descaminhos, arrisco. chove agora… e eu gosto desse barulho.

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Fábio Pessanha
 (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.

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(Imagem Joan Miró i Ferrà)