DAS ESCRITORAS E LEITURAS – VERA SAAD

Coluna | Palimpsesto


Minha relação com a leitura sempre foi intensa. Já li muito ao longo da minha vida (hoje percebo que os livros que carreguei e carrego onde quer que esteja são mais uma fuga para outros mundos do que propriamente um meio de conhecimento, tanto que nunca me considerei inteligente, mas talvez sensível demais). O movimento da leitura para a escrita ocorreu de modo natural, algo inevitável.

Dia desses estava relendo meus primeiros rabiscos. Sim, eram, de fato, muito ruins, nada de técnica, desabafos, no máximo, em uma época em que eu escrevia em guardanapos, papéis rasgados pendurados no ímã da geladeira e até mesmo na parede, e passava a limpo no computador em uma ordem estranha. Ocorre que, além do péssimo gosto, algo neles me chamou a atenção. Todos, sem exceção, tinham uma voz masculina, e aqui começo efetivamente meu texto. Minha voz no início da escrita era masculina. Por quê? Porque durante minha formação como leitora, ou seja, nas décadas de 1980 e de 1990, lia quase que exclusivamente livros escritos por homens.

Mas será que a escolha ocorria por preferência? Com a popularização da internet, passei a conhecer muitos sites literários, como Cronópios, Leia Livro entre vários outros, e, por eles, escritores e escritoras dos quais nunca tinha ouvido falar. Pela internet conheci Elvira Vigna, Adriana Lisboa, Márcia Denser, entre muitos outros. Citei os três primeiros nomes, pois calhou de serem meus escritorxs favoritxs.

Há algo muito difícil de ocorrer, sobretudo em escritorxs contemporânexs, mas que, quando ocorre, me deixa viciada nx escritorx. Trata-se de quando umx autorx consegue em sua obra (que deve abarcar muitas publicações, a ponto de se construir uma assinatura) engendrar um universo próprio. A construção não se vale tanto de técnicas, acredito eu, mas do olhar, o modo de ver o mundo, a partir de um repertório rico de leituras e de vida. Independente do livro, que pode apresentar personagens bastante diferentes do anterior, como uma menina de 12 anos em contraposição a um japonês do livro anterior, logo na primeira página já sou transportada ao universo daquele autor, universo esse que me faz falta. Isso ocorre certamente com as três escritoras mencionadas: Elvira Vigna, Adriana Lisboa e Márcia Denser. O que me faz pensar que minha formação como leitora é falha e que, por muito tempo, li escritores por não ter tido tanto acesso às escritoras, em uma época em que se premiavam majoritariamente homens e em que não havia internet. O que me faz pensar também no tanto de universos a serem desbravados, grande consolo a esta leitora que vos escreve.

OBS1: Sobre o olhar, a poeta Yara Souza escreveu algo parecido em uma de suas postagens no Instagram, a aumentar minha curiosidade sobre sua poesia. Penso em mais um nome a fazer parte desta coluna…

OBS2: Encontrei como uma solução barata acrescentar o x nos substantivos e adjetivos flexionados, se alguém tiver uma sugestão melhor, sou toda ouvidos.   

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.