Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo
Este conto encerra o livro Cartografias (inédito), vencedor do Prêmio da Cidade de Manaus este ano, mas deve sair publicado no livro Nunca Estivemos no Kansas, a sair em 2021. O primeiro rascunho dele foi escrito em fevereiro deste ano, quando o novo coronavírus era “apenas” uma notícia distante. Talvez, agora, as entrelinhas dessa história tragam notícias que nem mesmo eu poderia supor…
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Faz sol. A “unidade postal do fim do mundo” é um contêiner metálico com as janelas cobertas de adesivos, equilibrada em um píer estreito de madeira que avança alguns metros sobre as águas esverdeadas da enseada Zaratiegui — nome cujo significado eu sinceramente nunca fiz questão de saber. Quando se viaja tanto, é preciso escolher quais informações pesquisar; e “os nomes dos lugares, que importam ao poema?” — li certa vez e guardei quase sem querer. Alguns nomes ainda importam, por questões práticas, porém desde há muito já não me preocupo em saber de onde vêm. Se não costumo saber nem mesmo pra onde vou…
(“Para onde vai?”, me perguntam na imigração, no aeroporto de Buenos Aires. Apego-me à praticidade do que consigo nomear, à superfície do que desconheço, pra responder: “Ushuaia.” “Ah! Para o fim do mundo!”, o agente replica, sorrindo. Penso em dizer-lhe que o mundo é esférico, e portanto não tem fim. Mas lembro que não costumo saber nada, e apenas sorrio de volta.)
A unidade está fechada. Em frente a ela, uma caixa de correio vermelha, cilíndrica, com um aviso de Envios numa tarja amarela. Um rapaz saído de algum lugar às minhas costas caminha sem pressa até o cilindro — que lembra uma lixeira, ou talvez um mini poste de luz — e abre a portinhola. Do chão de dentro, retira três postais, que leva com displicência até o contêiner, destrancando a porta sem olhar pros lados e fechando-a depois de entrar.
Eu me interesso, sem preocupar-me em tentar entender o porquê, e consigo achar uma fresta não adesivada em uma das janelas. Ele coloca os postais sobre uma mesa, tira do bolso o celular, que põe também à mesa, e senta.
Pega o cartão de cima e o percorre com os olhos. Quando termina, posiciona o indicador da mão esquerda sobre um ponto no canto superior do papel e com a outra mão digita no telefone, movendo a cabeça entre os objetos por alguns segundos. Verifico meu próprio telefone, que identifica uma rede wifi chamada correio argentino, protegida por senha. Ele pesquisa o endereço do destinatário, então? De relance, consigo identificar na tela a aparência de uma rede social. Não o endereço, ora; está pesquisando o próprio destinatário! Vai rolando a tela com os dedos, atento. Após alguns minutos, pousa o celular de volta à mesa e segura o cartão. Rasga-o em quatro, sem hesitação, e joga os pedaços no cesto de lixo aos pés da cadeira.
Pega outro postal. Dessa vez seus olhos percorrem o papel mais lentamente, voltando a trechos anteriores em alguns momentos, pelo que consigo captar no modo como mexe a cabeça. Alcança o telefone e digita bem mais que antes. Traduz os trechos que não decifra, feito se montasse um quebra-cabeças, deduzo, sentindo-me já um tanto familiarizada com aquele desenrolar de gestos. Quando termina, mira a tela, pensativo. Tamborila os dedos na mesa, ergue o queixo. Receio que me perceba à janela, mas não: está completamente imerso nas frases que não alcanço, rabiscadas no papel, luminosas no celular, flutuando em sua mente. Ao fim, sorri. Dá mais dois toques no telefone, e vira os olhos novamente ao postal: como antes, posiciona o indicador esquerdo na parte superior do papel, enquanto digita com a outra mão. Um novo endereço, um novo nome? Rola vez mais a tela, movendo sutilmente a cabeça para cima e para baixo, numa concordância muda consigo mesmo. Sorri novamente. Agarra um enorme carimbo à sua esquerda e bate com ele sobre o cartão, colocando-o em seguida numa bandeja à sua frente, identificada com um papel escrito saída preso por fita adesiva.
Alcança o terceiro postal. Logo que pousa os olhos sobre ele, faz uma careta de estranhamento. Uma língua que não conhece, provavelmente. Talvez nem mesmo a reconheça. Arrisco mentalmente que vai pegar o celular de imediato, mas me engano: passa os dedos com ternura sobre o cartão. Seus lábios se movem como se tentasse pronunciar as palavras estrangeiras marcadas a tinta. Então sim, pega o telefone e, como antes fizera com alguma linha no topo dos postais anteriores, dessa vez percorre com o indicador esquerdo toda a mensagem escrita, enquanto digita com a mão direita. Quando chega ao final e dá o último toque na tela, faz uma nova careta de estranhamento. Recosta-se no espaldar da cadeira, mirando o celular. Digita espaçadamente, testando alternativas de tradução, suponho. Enfim parece dar-se por satisfeito, e se põe a olhar para a tela com a expressão mais compenetrada desde que entrou no contêiner: tensa e emocionada, o cenho franzindo e desfranzindo. Leva a mão ao queixo como se alisasse uma barba que não possui. Seus olhos reluzem: marejados? Torna a pegar o postal e pela terceira vez percorre o canto superior com o dedo enquanto digita no telefone. Rola a tela, por um tempo maior que das outras vezes, e de tempos em tempos balança a cabeça de um lado pro outro, negativamente. Deixa o celular sobre a mesa e segura o cartão com ambas as mãos. Abre uma gaveta e o coloca sobre uma pilha de outros. Hesita um instante e pega outro cartão do meio do bolo: olha-o com um sorriso e o guarda novamente.
Bate na beira da mesa com todos os dedos, menos os polegares, e se levanta. Vejo-o se dirigir à porta e me afasto de onde espreitava — ilesa, incógnita, e, principalmente, atordoada, talvez. Quando sai, eu o interpelo:
— Por que você fez isso?
— Isso o quê?
— Três postais. Eu vi.
Ele me olha com intensidade, sem nenhum medo.
— Algumas pessoas não sabem dar notícias do fim do mundo. E outras não merecem recebê-las.
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Thássio Ferreira, escritor radicado no Rio de Janeiro, é autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018 — obra vencedora do i Concurso Literário da editoria universitária). Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Mantém página no Facebook e no Instagram