Coluna | Palimpsesto
Minha mãe abriu a garrafa térmica e despejou o café fervendo na caneca, sentou-se, apoiou os cotovelos na fórmica vermelha, esmagou as bochechas com as palmas das mãos e chorou. As lágrimas reluzentes correram o nariz, pingaram no líquido preto. Do meu jeito, mostrei interesse e preocupação — sentei na outra ponta da mesa e esperei. A fumaça que lhe acariciava o rosto rareou, a tristeza não. Notei nela o guarda-pó da fábrica, sua segunda pele. Num dia comum, ela o teria deixado carinhosamente num cabide antes de fazer qualquer outro movimento pela casa. Dia incomum aquele.
Bebeu um gole salgado e frio e sentiu um arrepio de nojo. Depois esfregou as mãos nos olhos inchados, vermelhos, e na pele enrugada do rosto cansado. Olhou-me como que surpresa com a minha presença. Fez menção de levantar-se sem dar explicações. Nunca precisou explicar-se, nunca gostou de explicações. Naquele dia incomum, ela arriou o corpo na cadeira, amolecida. Os lábios finos e trêmulos e uma voz fraca e medrosa que ela nunca teve disseram-me da demissão na fábrica. Depois desabou o rosto sobre a fórmica, agarrou-se às beiradas da mesa. Soluçou até cansar. Em silêncio, eu a consolei. Do meu jeito.
O frio escuro mandou as crianças pra casa e a algazarra da brincadeira de pular corda se desfez no silêncio típico das noites de inverno. Falso silêncio, eco infinito do som de máquinas incansáveis dentro do galpão gigantesco, cravado no centro do nosso bairro, rodeado por homens e mulheres que viveram e vivem do trabalho na fábrica e por ali estacionaram suas vidas. Minha mãe deitou-se no sofá e dormiu. Com o guarda-pó. Desliguei a TV, sentei na outra poltrona e calculei sem dificuldade — viveríamos do meu salário e do dinheiro das encomendas de bolos que ela nunca cansou de atender. Pensando bem, a coitada nem tinha mais idade pra passar dias inteiros naquele inferno, em pé ao redor da máquina barulhenta, sem contar o calor insuportável nas jornadas de verão. Ela também reclamava do emprego todos os dias. E jurava de morte o encarregado do setor em que trabalhava. Sem ele saber, claro.
Antes de clarear o dia seguinte, repetindo os últimos quase trinta anos, minha mãe acordou sem a ajuda de despertador. Descobriu-se com o guarda-pó amarrotado no corpo, mas não se aborreceu. Organizou o lanche e caminhou para o trabalho. Minutos depois, fiz eu o mesmo caminho. Quando entrei no galpão, ela já rodeava a máquina, lubrificando engrenagens e verificando a dança dos fios. Diferente apenas o olhar sem brilho, nem sequer notado pelas colegas, menos ainda pelo infeliz encarregado do setor das trançadeiras. Chamava-se Gilmar o tal encarregado, uma espécie de cão de guarda bem adestrado pelos patrões.
Os dois eram os funcionários mais antigos da fábrica, contratados na mesma época, quando eu ainda tinha só alguns meses de vida. Meu pai desapareceu antes que eu pudesse conhecê-lo e minha mãe se viu obrigada a enfrentar não só a fábrica, mas também o Gilmar. Os dois nunca se entenderam. Nem quando trabalharam juntos no setor de embalagens, muito menos quando ele foi promovido a encarregado, graças ao talento insuperável para a caguetagem. A implicância entre eles levantava suspeitas. Havia quem visse naquele ranço todo um jeito de encobrir uma paixão não assumida. Outros iam além e espalhavam pelo bairro que os dois brigavam na fábrica e faziam as pazes na cama lá em casa. Gilmar era casado. Tudo mentira.
Os últimos trinta dias de trabalho garantidos por lei destruíram o que restava da minha mãe. Mas ela os cumpriu como se estivesse no período de experiência, com mais cuidado e zelo pelos equipamentos do que nunca. Passou uma semana inteira sem produzir aparas. Quando a máquina precisa ser desligada por algum descuido na operação, uma parte da corda produzida se perde, vai pra reciclagem — são as malditas aparas. Pois nem o feito histórico, devidamente registrado no quadro branco instalado na fábrica para anunciar premiações, recordes e servir de motivação para os funcionários, animou minha mãe naqueles últimos dias. Passou a falar menos, a comer menos e a dormir mais. Dormir com o guarda-pó da fábrica.
Também batemos o recorde mensal de produção justamente no último mês de trabalho com ela. Outro motivo para comemoração e anotação no quadro branco. Não mudava em nada a vida dos funcionários. Apenas um número diferente ao lado dos registros de dias sem acidentes de trabalho e outras marcas ainda menos relevantes. Mas a alegria estampava os rostos. Exceto o da minha mãe. Que guardava atrás do semblante mais cansado e triste a esperança de continuar a trabalhar depois dos trinta dias.
Os olhos de minha mãe fixaram-se nas grandes rocas de corda produzidas pela trançadeira que ela operava naquele dia em que a fábrica comemorava. — Quem liga se creditaram o feito às máquinas modernas e aos funcionários novos, que recebem menos e trabalham mais? — Ela ateve-se pela primeira vez na vida aos finíssimos fios unidos em feixes; e aos vários feixes enroscados num grupo ainda mais espesso que se junta a outros e outros até formar a corda flexível, mas firme e resistente, capaz de suportar o peso do corpo inteiro de uma pessoa. Sentiu orgulho e tristeza.
Foi sozinha com esses pensamentos pro lanche. Ainda hoje os funcionários se revezam pra não parar as máquinas e pra evitar a fofoca no refeitório. Ideia do Gilmar. Minha mãe foi surpreendida pelo triste encarregado enquanto “pensava na morte da bezerra”, dois minutos além do horário estipulado pro café. Bateram boca pela última vez.
— Hoje sou eu, amanhã és tu! — minha mãe disse, sem mais explicações, e com a caneca suja quase enfiada na cara do Gilmar. — Quem avisa amigo é!
Ela acordou mais cedo no último dia de trabalho. Passou o guarda-pó amarrotado, ajeitou os cabelos como nunca tinha feito antes e caminhou até pra fábrica como sempre. Tinha a esperança de que aquele seria um dia especial, imaginou algum tipo de homenagem talvez. Mas a redenção não veio. No fim da tarde, ainda a chamaram ao escritório e, por alguns segundos, acreditou que seria readmitida, mas a moça do RH queria apenas uma assinatura num papel. Depois informou a data pro pagamento da rescisão do contrato. Minha mãe nem ouviu.
Dali em diante, até o som opressivo das máquinas desapareceu. Passou os últimos minutos num silêncio inexistente. No tumultuo da troca de turnos, apanhou um longo pedaço de corda e o enfiou dentro da mesma mochila onde guardou as tralhas deixadas no armário da fábrica por tantos anos. No quadro branco de recordes, esfregou uma estopa suja de óleo e apagou todas as inscrições, deixando um borrão marrom-azulado na superfície lisa. Desenhou por cima da mancha, com o canetão usado para o registro dos grandes feitos, um coração enorme, de uma ponta a outra do quadro. E foi pra casa. Chorou, bebeu café frio, dormiu com o guarda-pó.
Na manhã seguinte, Gilmar deu falta do pedaço de corda e tratou de apagar o coração no quadro. O desenho já rendia comentários engraçadinhos pela fábrica inteira. Invadiu a sala do patrão pra informar o ocorrido com a ex-funcionária, mas o homem que sempre lhe recebia sorrindo desta vez estava com a cara fechada. Gilmar sentou-se, pressentindo a má notícia. Depois desceu ao departamento pessoal e assinou os documentos do aviso prévio. No outro dia não apareceu pra cumprir os trinta dias. Enforcou-se em casa.
A notícia se espalhou pelo bairro inteiro, mas minha mãe, enfiada na solidão, sem encontrar outro jeito de viver, talvez tenha sido a última pessoa a saber. No dia em que Gilmar se matou, corri pra lhe contar a tragédia, mas não tive coragem. Ela exibia seu lindo e velho sorriso e recebia no rosto o carinho do vento, enquanto ia e vinha, com as mãos enrugadas e firmes nas cordas do balanço novo.
A fábrica continua a bater recordes. Máquinas novas, novos funcionários, tudo novo. De velho, apenas o quadro branco ainda na parede. Se você olhar com atenção, consegue ver no fundo dos números cada vez maiores a marca do coração da minha mãe.
E eu aqui trabalho em silêncio, do meu jeito.
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Anderson Bernardes é autor do romance não arranquem os vermes de mim (Oito e Meio, 2019). Formado em Comunicação Social – Jornalismo, com especialização em Design Gráfico, é sócio-fundador e editor da Ipêamarelo/Tabebuia. As crônicas de Braga e Sabino, as narrativas curtas de Poe, Machado e Kafka, a prosa proletária de Luiz Ruffato, a poesia de Sylvia Plath e as histórias de Dona Izaltina dizem um pouco de sua escrita.