Coluna | Lorca
Há oitenta e quatro anos, no dia 18 de agosto de 1936, o escritor Federico García Lorca, no auge de sua produção literária, era covardemente assassinado pela ditadura do General Franco, durante a Guerra Civil Espanhola.
Assim, este texto e as traduções que se seguem são uma breve e singela homenagem a Lorca e a todos aqueles que tiveram suas vidas e seus sonhos interrompidos por regimes autoritários e fascistas.
Um pouquinho sobre Lorca
Federico García Lorca nasceu em 1898, na pequena aldeia de Fuente Vaqueros, localizada na província de Granada, ao sul da Espanha. Dramaturgo, poeta, desenhista e tradutor, conseguiu, ainda em vida, considerável reconhecimento. Iniciou seus estudos de Letras, filosofia e direito em 1914, na Universidade de Granada, diplomando-se em 1923, em Madrid. Durante este tempo, teria contato com os surrealistas espanhóis, entre os quais estava Salvador Dalí. Em 1926, Lorca escreveria o poema Oda a Salvador Dalí, revelando a importância do pintor em sua vida e a influência deste sobre sua obra. Diversos biógrafos apontam, ainda, que foi por influência de Dalí que Lorca passou a se dedicar também às artes plásticas, na década de 1920.
Em 1929, Lorca viaja para Nova Iorque. Durante sua estada nos Estados Unidos, escreve o livro Poeta em Nova York (1930), onde consegue retratar em seus versos a pobreza, a desigualdade, a angústia e as dificuldades de todos aqueles que vivem à margem na sociedade norte-americana.
Da obra de Lorca, destacamos, também, El maleficio de la mariposa (1921), seu primeiro livro de poemas, Romancero Gitano (1928), Diván del Tamarit (1940) e Sonetos de Amor Oscuro (1983), ambos publicados postumamente, e as peças Mariana Pineda (1927), Bodas de Sangre (1933), Doña Rosita la soltera o el lenguaje de las flores (1935) e La Casa de Bernarda Alba (1936).
Na década de 1930, ao regressar para seu país natal, Federico García Lorca encontra uma Europa assolada pelos fascismos e pela guerra. Ele jamais deixou de expressar seu repúdio ao fascismo e em 18 de agosto de 1936 é assassinado em Granada, com tiros de fuzis pelas costas, a mando dos generais franquistas.
Embora nunca tenha se assumido publicamente, por conta de todo contexto repressor no qual estava inserido, todos os biógrafos concordam que García Lorca era homossexual e que este é um dos elementos que explica a perseguição que ele sofreu por parte da ditadura franquista. Há, em diversos de seus textos, inúmeras conotações homoafetivas e homoeróticas. De modo discreto e subliminar, Lorca consegue, em muitos dos seus versos, dirigir-se aos seus amantes ou falar a respeito da sua homossexualidade, do desejo que tinha por outros homens. Isso fica bastante evidente em sonetos em que o eu lírico, numa leitura inicial e apressada, parece estar dirigindo-se apenas ao “amor”, ao “amor” enquanto sentimento e ideia. Contudo, principalmente em sonetos como El amor que duerme en el pecho del poeta e El poeta pide a su amor que le escriba, torna-se claro que o eu lírico está a falar, de modo velado, sobre um homem amado, sobre um amor homoafetivo, perfeitamente escondido sob a palavra “amor”.
O homoerotismo, por outro lado, surge através de símbolos fálicos, como é o caso deste verso “[…] con un puñal, con besos y contigo”, em que a palavra punhal remete ao órgão sexual masculino, à ideia de um falo ereto. Não raro, o eu lírico lorquiano menciona punhais, espadas e outros símbolos fálicos em seus versos.
Por fim, vale mencionar que em 2013, em um livro intitulado Querido Salvador, Querido Lorquito, o pesquisador espanhol Víctor Fernandez traz à tona uma série de cartas trocadas entre Salvador Dalí e García Lorca, revelando que a relação entre os dois foi algo além de uma grande amizade. A verdade é que não é recente a desconfiança de que havia algo a mais na relação de Lorca e Dalí. Num filme de 2008, intitulado Little Ashes, dirigido por Paul Morrison e protagonizado por Robert Pattinson e Javier Beltrán, a relação complexa dos dois artistas espanhóis e o modo como se sentiam atraídos um pelo outro já surge de modo bastante intenso e ambíguo.
Assim sendo, de modo a traçar uma breve homenagem a esse artista que dá nome à nossa coluna, decidimos partilhar aqui a desafiadora tradução de alguns dos seus sonetos – todos retirados do livro Sonetos del amor oscuro.
Traduzir poesia, sem dúvida, é um grande desafio, um trabalho que exige habilidade, paciência e uma série de escolhas difíceis por parte do tradutor. Portanto, é importante dizer que, em virtude da complexidade de imagens, figuras de linguagem e sons presentes nos versos de Lorca, em alguns momentos foi necessário lançar mão da criatividade, de modo a tornar o poema inteligível em português. De resto, a tradução desses sonetos não é mais do que a nossa própria leitura, a nossa interpretação, dos versos deste grande poeta, que continua presente em nossas vidas – com seus poemas, suas peças teatrais, suas palavras, sua arte –, tocando os nossos corações, falando-nos sobre o amor, a tristeza, a beleza e a angústia de ser humano, num mundo ainda tão repleto de injustiça e de dor.
As traduções1
Llagas de amor
Esta luz, este fuego que devora.
Este paisaje gris que me rodea.
Este dolor por una sola idea.
Esta angustia de cielo, mundo y hora.
Este llanto de sangre que decora
lira sin pulso ya, lúbrica tea.
Este peso del mar que me golpea.
Este alacrán que por mi pecho mora.
Son guirnaldas de amor, cama de herido,
donde sin sueño, sueño tu presencia
entre las ruinas de mi peito hundido.
Y aunque busco la cumbre de prudencia
me da tu corazón valle tendido
con cicuta y pasión de amarga ciencia.
–
Chagas de amor
Esta luz, este fogo que devora.
Esta paisagem gris que me rodeia.
Esta dor por um só ideia.
Esta angústia de céu, mundo e hora.
Este pranto de sangue que decora
Lira já sem pulso, lúbrica teia.
Este peso de mar que me golpeia.
Este lacrau que em meu peito mora.
São grinaldas de amor, cama de ferido,
onde sem sono, sonho a tua presença
entre as ruínas do meu peito fundido.
E apesar de buscar o cume da prudência,
dá-me o teu coração vale expandido,
com cicuta e paixão de amarga ciência.
El poeta dice la verdad
Quiero llorar mi pena y te lo digo
para que tú me quieras y me llores
en un anochecer de ruiseñores
con un puñal, con besos y contigo.
Quiero matar al único testigo
para el asesinato de mis flores
y convertir mi llanto y mis sudores
en eterno montón de duro trigo.
Que no se acabe nunca la madeja
del te quiero me quieres, siempre ardida
con decrépito sol y luna vieja.
Que lo que no me des y no te pida
será para la muerte, que no deja
ni sombra por la carne estremecida.
–
O poeta diz a verdade
Quero chorar minha dor ao teu abrigo
para que me queiras e comigo chores
em um anoitecer de sabiás cantores
com um punhal, com beijos e contigo.
Quero pôr fim ao rastro antigo
do assassinato das minhas flores
e converter todos os prantos e tremores
numa eterna pilha de duro trigo.
Que jamais se apague essa meada
do te quero e me queres, ainda mantida
pelo decrépito sol e a lua enviesada.
Que o que não me dês e eu não diga
Fique para a morte, que não deixa nada,
nem sombra pela carne sacudida.
El amor duerme en el pecho del poeta
Tú nunca entenderás lo que te quiero
porque duermes en mí y estás dormido.
Yo te oculto llorando, perseguido
por una voz de penetrante acero.
Norma que agita igual carne y lucero
traspasa ya mi pecho dolorido
y las turbias palabras han mordido
las alas de tu espíritu severo.
Grupo de gente salta en los jardines
esperando tu cuerpo y mi agonía
en caballos de luz y verdes crines.
Pero sigue durmiendo, vida mía.
Oye mi sangre rota en los violines.
¡Mira que nos acechan todavía!
–
O amor que dorme no peito do poeta
Tu nunca entenderás quanto te quero
porque dormes em mim assim, querido.
Por vozes metálicas perseguido
de todos te escondo, em desespero.
Lei que agita como carne e luzeiro
que transpassa meu peito dolorido
e as turvas palavras têm mordido
as asas do teu espírito austero.
Toda gente salta nas campinas
Aguardando teu corpo e minha agonia
Em cavalos de luz e verdes crinas.
Porém, minha vida, segues dormindo.
Ouve a rota triste nas melodias.
Veja que nos ameaçam, bramindo!
El poeta pide a su amor que le escriba
Amor de mis entrañas, viva muerte,
en vano espero tu palabra escrita
y pienso, con la flor que se marchita,
que si vivo sin mí quiero perderte.
El aire es inmortal, la piedra inerte
ni conoce la sombra ni la evita.
Corazón interior no necesita
la miel helada que la luna vierte.
Pero yo te sufrí, rasgué mis venas,
tigre y paloma, sobre tu cintura
en duelo de mordiscos y azucenas.
Llena, pues, de palabras mi locura
o déjame vivir en mi serena noche
del alma para siempre oscura.
–
O poeta pede ao seu amor que escreva
Amor de minhas entranhas, viva morte,
em vão espero as tuas cartinhas
E penso, como as flores tão murchinhas,
Que viver sem ti é uma triste sorte.
O ar é imortal, a pedra inerte
Nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
Do mel gelado que lua verte.
Com saudades, rasgo as minhas veias inteiras,
tigre e pomba, sobre tua cintura
num duelo de chupões e amoreiras.
Cheia de palavras, pois, eis minha loucura,
Ou deixa-me só nesta noite serena
de alma para sempre escura.
El poeta habla por teléfono con el amor
Tu voz regó la duna de mi pecho
en la dulce cabina de madera.
Por el sur de mis pies fue primavera
y al norte de mi frente flor de helecho.
Pino de luz por el espacio estrecho
cantó sin alborada y sementera
y mi llanto prendió por vez primera
coronas de esperanza por el techo.
Dulce y lejana voz por mí vertida.
Dulce y lejana voz por mí gustada.
Lejana y dulce voz amortecida.
Lejana como oscura corza herida.
Dulce como un sollozo en la nevada.
¡Lejana y dulce en tuétano metida!
–
O poeta fala ao telefone com o amor
Tua voz regou o deserto do meu coração
Na doce cabina de madeira.
Ao sul dos meus pés, nasceu uma cerejeira.
e ao norte da face, flor de açafrão.
Pinho de luz pelo lugar quieto
surgiu sem luz solar e sementeira
e meu pranto cessou uma vez primeira,
coroas de esperança pelo teto.
Doce e distante voz por mim vertida.
Doce distante voz por mim amada.
Distante e doce voz amortecida.
Distante como escura corça ferida.
Doce como um soluço na geada.
Distante e doce no âmago escondida!
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1 Os poemas originais de Lorca traduzidos neste texto foram todos acessados no seguinte endereço eletrônico, numa edição digital de Sonetos del amor oscuro
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Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em literatura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno.
(Ilustración: Raúl Arias)