Coluna | Palimpsesto
“O inferno é superficial.
O inferno é um nada que tem a pretensão e dá a ilusão de ser.”
Simone Weil, O Peso e a Graça
Represado no meio de mim, tantas coisas que pensei em formar, formatar, adentrar para o mundo das palavras e com isso ao mundo comum, ao convívio. Esse vazio indelével que me persegue, se manifesta de maneiras diversas, com tantas possibilidades de aparição.
Parada na varanda olhando a garoa cair sobre as folhas, um morcego voava próximo a uma palmeira, transitava pela noite procurando frutos. Minha atenção se voltava para ele na mesma velocidade que ele voava no céu escuro. Naquele momento o vazio parecia surgir na forma de insuficiência, mesmo frente ao mar e à névoa o meio de mim ficava maior que as extremidades, meu receio era que aquilo me engolisse por completo, como uma presa indefesa mergulhada no deserto próprio. De vista cerrada o morcego se transformou num borrão, misturado, sem contorno.
Uma voz: Quero mais. Quero mais. Quero mais.
Mais o quê? Perguntei tentando manter a inocência.
Não houve resposta, silêncio contínuo. Meus pensamentos pareciam seguir, vinham um atrás do outro, fingindo novidade. Fingindo verdade, imaginando buracos, roendo frestas, machucando meus pés, maldizendo meu caminho.
Abri os olhos. Tudo no mesmo lugar. Vi vagalume voando e logo sumindo, pairavam mariposas na luz do terraço, as palmeiras balançando, o mar invisível perdido na chuva. Dobrava escuridão cada onda que chegava na areia, assim como meu vazio e seus ecos. Mais cedo havia lido justamente sobre isso, essa condição humana da insuficiência. E lá estava meu corpo reagindo à leitura, pondo em prática na curva da percepção através do sentir. Não era apenas pensamento, era dor também, de algo que não me preenchia. Esse excesso de peso que acomete a todos nós.
Voragem se aproximava, em sua força centrípeta, me direcionando aos confins do fundo. Pensei na finitude da queda, se isso era possível, parar de cair, ao menos interromper por um instante. Coloquei meus pés no chão frio de porcelana, eles pareciam mais tortos do que lembrava de serem. O dedão do pé esquerdo estava contraído, como se segurando uma fina linha. Tentei abrir as articulações e mesmo fazendo um certo esforço no pensar, nada acontecia, e o dedão contraído. Pensei nos autistas que andam apenas na meia ponta, naquela tentativa contínua de voar.
Levantei retomando a gravidade no fazer o ceder dos dedos. Na varanda o piso estava um tanto úmido por conta da garoa. Caminhar estava diferente, meu corpo parecia todo estranho, havia um excesso de consciência do ato, como quando andando de bicicleta tentamos compreender cada movimento e acaba numa queda. Eu estava prestes a cair, decerto, a voragem era física, presente por esse estado cultivado. Nesse momento você abriu a porta, o que fez o som das coisas mudarem, talvez por uma nova passagem de ar que se criou. Olhei pro teu rosto, sua barba, seus cabelos pretos, o torço sob a camisa respirava.
Prestes a perceber tudo, a minha loucura, o torpor… Você levantou a mão num gesto de chamada, disse:
– Vamos dormir?
Pensei, bom, talvez, talvez você não tenha visto nada, no meu fundo que procuro o fim.
Respondi apenas com um aceno de cabeça afirmativo, você aceitou e voltou para a casa.
Como eu poderia voltar? Retornar à cama, se o equilíbrio não parecia possível, teria de dormir no sofá, mas sem que você percebesse. Meus pés agora estavam novamente contraídos, num esforço e me fixava sobre os calcanhares. Lembrei de uma cena que vi em um ano-novo: uma mulher, muito depois da meia-noite, era carregada por um homem grande, ela tinha cabelos negros como o seu, só que compridos e estavam presos de um modo que parecia ter sido feito às pressas, seu pé pingava sangue e mesmo de longe dava para ver os cacos de alguma garrafa ou copo enfiados no meio do pé esquerdo. Ela gritava e não parecia de dor, algo próximo a desespero, possivelmente pelo excesso de sangue. O homem grande tinha a camiseta também suja de sangue, e atrás deles vinha um casal parecendo completamente embriagado, a mulher ria tropeçando e o homem a segurava rindo também, quando eles passaram perto de mim o homem grande falou:
– Agora, onde foi parar o carro?
Olhei para os meus pés, senti como se o caco estivesse no meu pé esquerdo. Cai no sofá, uma pressão enorme se manifestava no meu peito, eu ia morrer de tanto sangrar. Tentei olhar para o mar lá longe, esperando se em algum momento você iria me buscar como o homem grande, procurando o carro, bêbado, com seus amigos rindo de mim, enquanto eu gritava agonizando a morte próxima. Ia desaparecer no meio do mar de sangue, escuro, que dobrava na areia, entorpecida, caminhando até a substância da qual todos viemos e devemos voltar.
Ia virar um nada, sem nome, contorno, referência, apenas dissolvida, para uma criança de manhã encontrar uma bolacha do mar tingida de vermelho acreditando que ali algo aconteceu.
_______________________
Camilla Loreta é formada em Audiovisual e História da Arte, em São Paulo. Pesquisa a escrita, o corpo e a imagem através das artes gráficas e audiovisuais. Seu trabalho foi publicado pela Editora Caixa e participou de feiras com a Plana (SP e RJ) e Tijuana (SP e RJ) em livros e zines individuais e coletivos. Dirigiu dois curtas-metragens, Clara e O Silêncio das Pedras, sendo esse último selecionado para a Semana Paulista de Curta-metragem. Participou de diversas residências internacionais e nacionais, entre elas: Kaaysa em Boiçucanga (Brasil) com o estudo Como se salvar de afogamentos; Encosta Residência na Ilha do Mel (Brasil), onde desenvolveu projetos de impacto local, dialogando com as comunidades e histórias da região; a residência solo FUGA (Nova Iorque) que rendeu seleção no Festival do Filme Livre, exibido em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília em 2019; The Artist meeting em Marianowo (Polônia), onde iniciou a escrita do livro Sândalo vermelho e os gatunos olhos dela, será romance de estreia como escritora, no momento em fase de aguardo para o mundo se assentar. Entre suas principais referências estão: Virginia Woolf, Matsuo Bashô, Ana Maria Gonçalves, Gita Metha, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carola Saavedra e Haruki Murakami.
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
(Imagem Barbara Monacelli)