Coluna | Palimpsesto
Entre 1968 e 1969 e 1976 e 1977, Clarice Lispector produziu uma série de entrevistas para as Revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente, entrevistas estas que foram tema da minha tese de doutorado. Publicarei trechos da minha tese em homenagem à escritora, que, se viva, faria cem anos no dia 10 de dezembro. Começo hoje destacando um tema que muito me atrai: o silêncio.
Na crônica Escrever as entrelinhas, publicada no Jornal do Brasil¸ no dia 06 de novembro de 1971, Clarice Lispector escreve:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra — a entrelinha — morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.
O silêncio ganha a dimensão das entrelinhas nas entrevistas realizadas por Clarice, quando a não palavra apresenta-se na sua essência, sem “morder a isca”. Vejamos, por exemplo, a entrevista com o maestro Issac Karabchewsky, do dia 18 de maio de 1968. A linha fina é preenchida com uma interessante fala do maestro: “prefiro o grito ao silêncio”. Porém, ao longo do diálogo, após a fala de seu entrevistado sobre o que sente quando rege, Clarice acresce a seguinte intervenção: “silêncio nosso”. Convém reproduzirmos o trecho em questão:
[…]
— Que é que você sente enquanto rege?
— Quando rejo sinto-me transportado — perco minha individualidade e vivo com intensidade e partitura. Após o concêrto sou um farrapo, consumido pelo suor e cansaço; mas quando tudo foi bem, o homem mais feliz do mundo.
Silêncio nosso.
— Tenho uma experiência a contar. Uma vez fui à MANCHETE falar com Adolpho Bloch sôbre um plano destinado a levar a música sinfônica às diversas camadas da população ainda não atingida pela música erudita. Êle me ouviu — e disse-me: “Isaac, isto é uma bobagem! Porque pensar em três mil quando podemos atingir trinta mil? Deixe por minha conta!” Reuniu então o seu staff e programou um espetáculo no Monumento dos Pracinhas, com a OSB, três bandas militares, canhões e sinos. A peça principal era a abertura 1812, de Tchaikovsky. A princípio não acreditei que desse certo — sempre tive receio de aglomerações para ouvir música, multidões só para comícios e enterros importantes. Nos acordes finais da 1812,onde o Hino Russo se impõe, vi o povo correr em minha direção. Na frente de todos, de braços abertos, quase chorando, vinha Adolpho. Senti que havia ganhado nesta noite um grande amigo. E não só isso: em diferentes etapas de minha vida, foi Adolpho o conselheiro, pai e irmão.
[…]
Nota-se que a intervenção da entrevistadora, em que presenta o silêncio entre os dois, está deslocada na fala do entrevistado, como se o silêncio também pertencesse à resposta do maestro — quem prefere o grito ao silêncio — acerca do que sente quando rege.
Na entrevista com Djanira, novamente o silêncio ganha dimensões expressivas:
[…]
— Se você não tivesse se encontrado com a pintura, que forma de arte você crê que seria sua?
— Possivelmente a música. Mas dependeria de um encontro como com a pintura. Sei que quando eu tivesse me alcançado humana e intelectualmente, a pintura ia de qualquer forma cruzar o meu caminho.
Ficamos em grande silêncio. Provavelmente mergulhadas ambas nas nossas vidas mútuas. Como não posso transmitir aos leitores a profundidade de nosso silêncio, preencho-o reproduzindo um poema de Djanira. Chama-se Viagem. E é assim:
Eu vi nas côres de marfim
um elefante selvagem
que viera das Índias
oferecendo-me caminhos
onde poderia
perigosamente
fechar meus olhos
e partir, partir. . .
Mas era pecado
e viajei no pecado.
Ao infinito viajei
e perdi-me no tempo
que era pecado.
Djanira então falou:
— Quando uma pessoa se faz por ela própria é porque tem algo dentro de si que não se acomoda a uma vida comum, não é?
— Sei disso na minha própria carne.
[…]
Aqui Clarice é taxativa: a profundidade do silêncio é intransitiva, a ponto de apenas um poema ser capaz de preenchê-la. Tal como na entrevista com Karabchewsky, nessa entrevista também a intervenção é alocada na fala de Djanira, porém, após o “grande silêncio”, as palavras da entrevistada mergulham na profundidade do silêncio e da poesia. Na entrevista com Carlos Scliar o silêncio também é inserido entre suas falas, mas em vários momentos:
[…]
Contei que entrevistara Fayga Ostrower, Djanira e êle. Sciliar comentou:
— São três artistas de formação diversa.
Silêncio.
— Para mim que fui pintor teimoso, mas que não vivia profissionalmente do meu trabalho, vivo nesses últimos anos, em que encontrei um público interessado e que acompanha tudo o que eu faço, vivo surpreendido até hoje e muitas vêzes acordando sem compreender exatamente o que está acontecendo. Acho que a comunicação é fundamental e eu sou um homem que gosta de gente, que tem confiança nos homens que trabalham e produzem tudo aquilo que nos rodeia. O que eu desejaria era conseguir que meus quadros incutissem esperança e fôrça a todos.
Silêncio.
— Todas as coisas que eu lhe disse não impedem que eu seja um homem isolado. Mas acho que isso é próprio da condição de quem produz uma obra de arte. Mas penso também que essa mesma obra se multiplica, se amplia, se transforma em algo que eu não podia prever dos olhos que me vêem.
[…]
Observamos inicialmente a pergunta da Clarice no discurso indireto. A resposta é curta, seguida do “silêncio”, que por sua vez, é seguida por outra fala, a qual inclusive contém a linha fina da entrevista: “gostaria que meus quadros incutissem a esperança e força a todos”. A fala é ainda seguida por outro silêncio, como se o silêncio ocupasse o lugar das perguntas da entrevistadora, a confundir novamente quem discursa e quem silencia.
Cumpre ressaltarmos que o silêncio também está presente na obra literária de Clarice Lispector, segundo Maria Lúcia Homem: “O silêncio — o impossível de ser dito ou aquilo sobre o que não se pode falar – é um ponto de fuga que se revela em diversos textos de Clarice Lispector”. A pesquisadora identifica nos textos claricianos algo que permanece “insistindo além das palavras, onde é o olhar que se depara com o vazio e o silêncio do inapreensível”.
Pela não palavra, pelo “silêncio do inapreensível”, Clarice pinta outros matizes de seus entrevistados, a afastá-los de imagens predefinidas. A propósito, pelo silêncio, Clarice abre seu texto a infinitas conversas imaginárias. A entrevista não apenas se erige pelo diálogo efetivo, mas por outros tantos diálogos a serem imaginados.
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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.