Coluna | Palimpsesto
Em O inventário das sombras, no texto “Clarice Lispector”, José Castello nos conta uma história no mínimo curiosa. Quando o jovem repórter depositou seu pequeno gravador na mesa de centro, Clarice Lispector começou a gritar e a andar pela sala da casa com os “braços estirados em hélice”. O então jornalista de O Globo, encarregado de entrevistar a escritora, que, diziam, decidira nunca mais receber a imprensa, procurava alguma justificativa àquele grito. Suas hipóteses são bastante divertidas: “A sala estava sendo invadida por algum desconhecido? Havia algum foco de incêndio? Algum sinal de tragédia a que este pudesse corresponder?” Nenhuma resposta. Nem mesmo a amiga da escritora, que surgira na sala imediatamente, proferiu qualquer palavra que justificasse a razão daquela cena, apenas abraçou a amiga com força. Até que, mais controlada, Clarice apontou para o gravador: “Tire isso daqui!”, ela disse, “Não quero isso aqui!”, continuou, “Tire isso imediatamente.” A mulher que a abraçava reafirmou: “Minha amiga se refere ao gravador. Guarde-o, por favor.” Mas Clarice se antecipou. Ela mesma tomou o gravador das mãos do José Castello e o trancou no armário. “No fim da entrevista, eu lhe dou aquilo de volta.”, disse, por fim. Concedeu uma entrevista “tensa, cheia de suspeitas e de mal-entendidos, sem conversa, somente respostas curtas e ríspidas”. Ao final, convidou seu entrevistador para comer bolo com Coca-Cola em sua cozinha, onde revelou: “Gosto de você”, e explicou: “Você também sabe que tudo isso é uma tolice.” Enfim, a escritora lhe devolveu o gravador, e, já na porta, disse “Volte para me visitar, mas nunca mais traga isso” (cf. CASTELLO, 1999, p. 20-25).
O ano era 1976, meses antes de Clarice Lispector passar a trabalhar justamente como entrevistadora para a revista Fatos e Foto /Gente, da Bloch Editores. O mais estranho reside no fato de Clarice já ter trabalhado como entrevistadora anteriormente para a mesma empresa, com uma coluna fixa na Revista Manchete. Como é possível alguém que entre em pânico com um pequeno gravador e que considere a entrevista “uma tolice” ter trabalhado precisamente como entrevistadora para veículos de comunicação? Talvez uma afirmação de Lispector durante uma entrevista com João Paulo dos Reis Velloso ajude-nos a esclarecer o mistério: “Gosto de pedir entrevista — sou curiosa. E detesto dar entrevistas, elas me deformam”. E sua curiosidade rendeu 83 entrevistas publicadas pela empresa de Adolpho Bloch: das quais 59 foram realizadas para a revista Manchete; e 24 para Fatos e Fotos/Gente.
Na realidade, a primeira entrevista de Clarice Lispector corresponde a um período bem anterior, quando a escritora ainda era a jovem repórter da década de 1940. Sua entrevista de estreia data do dia 19 de dezembro de 1940. Publicada na revista Vamos Ler!, a entrevista recebe o título “Uma hora com Tasso de Oliveira”. A seguir, alguns trechos:
Para mim, entrevistar Tasso de Silveira era continuar uma daquelas palestras tão profundas, nas quais eu assistia atenta o(sic) poeta revolver os grandes problemas do pensamento. […] Depois quando eu descia a comprida rua Camerino, ia imaginando uma frase, uma idéia que contivesse aquela alma tão complexa, tão jovem, mas tão serena. […] E ele é um homem que luta realmente, sua atitude diária não é de contemplação estática, não é daqueles poetas “fim de século”. […] E é sua grande unidade interior, invulnerável até diante da verdade contemporânea que provoca sem dúvida os ritmos eternos de sua poesia.
— Vim lhe fazer algumas perguntas indiscretas: alguns “comos” e “porques”, digo-lhe.
[…]
— E, perguntei eu, sentindo que chegava um momento importante da entrevista […]
Fazemos uma pequena pausa, durante a qual a esposa do poeta, com sua presença simpática e serena, vem nos chamar para o chá.
— E novas produções? Pergunto eu ainda.
[…]
Sorrio, porque me lembro de que eu também, quando lhe escrevi minha opinião sobre “Canto Absoluto”, empreguei termos poéticos, falei em “manhãs ingênuas”, num “fortíssimo instinto de conservação da alma”, e sei lá mais o que…A razão disto é que a força poética do livro contagia…
Evidentemente ele é um homem raro, porque justamente, não é triste. Um dia, num momento de desânimo, perguntei-lhe: “Afinal, “isso” vale a pena?”. “Vale a peníssima”, riu ele. Nada melhor explica a poesia e sua obra[1].
A entrevista é semelhante às entrevistas publicadas posteriormente na Manchete e na Fatos e Fotos/ Gente. No estilo pingue-pongue, assim como as demais, é precedida por uma introdução que apresenta o entrevistado. A disposição do texto somente se diferencia das entrevistas ulteriores quanto aos intertítulos, tais como “’Um homem triste’, autoanálise que demonstrará um homem alegre”, “A França se salvará”, “Livros a publicar — ‘o poeta cristão do Brasil’ — ‘não se pode fazer auto crítica em literatura’”, que dividem a entrevista conforme o assunto a ser discutido.
Com relação ao conteúdo, já na introdução da entrevista, notamos uma Clarice Lispector que se revela na primeira pessoa do singular, “para mim entrevistar Tasso de Silveira […]”, acentua uma certa intimidade com o entrevistado, quando relata que a entrevista nada mais seria do que uma continuação daquelas “palestras profundas” debatidas entre os dois na redação de Pan e revela suas próprias impressões sobre o Tasso de Silveira, alguém com “alma tão complexa, tão jovem, mas tão serena”, “um homem que luta realmente”.
A primeira pergunta da entrevista é peculiar: “Vim lhe fazer algumas perguntas indiscretas: alguns ‘comos’ e ‘porquês’, digo-lhe.”. Isso porque não se trata de uma interrogação propriamente dita, mas de uma análise sobre o ato de entrevistar, que ela chama de “perguntas indiscretas”, de “alguns ‘comos’ e ‘porquês’”.
Nota-se que, no desenrolar da entrevista, é estabelecido o diálogo. Os mais diversos temas, que englobam desde literatura até religião e guerra, são abordados em uma comunicação bilateral em que o entrevistador presta atenção ao que o entrevistado afirma, para, a partir daí, formular a próxima pergunta.
O diálogo, contudo, já se singulariza pelas intervenções de Clarice Lispector ao longo da entrevista. Por exemplo, quando, entre uma pergunta e outra, a entrevistadora revela: “fazemos uma pequena pausa, durante a qual a esposa do poeta, com sua presença simpática e serena, vem nos chamar para o chá.”, ou ainda, mais adiante, quando Clarice enuncia: “Sorrio, porque me lembro de que eu também, quando lhe escrevi minha opinião sobre ‘Canto Absoluto’, empreguei termos poéticos, falei em ‘manhãs ingênuas’, num ‘fortíssimo instinto de conservação da alma’, e sei lá mais o que… A razão disto é que a força poética do livro contagia…” Essas interrupções nos lembra os diálogos interiores referidos por Bakhtin durante o estudo sobre a poética de Dostoiévski.
Aliás, na última passagem citada, é possível constatar que, mesmo não sendo ainda escritora consagrada, Clarice Lispector discorre sobre a própria escritura, e os “termos poéticos” que utilizou para elaborar a opinião sobre uma obra do escritor. A partir de tais marcas, o diálogo com Tasso de Oliveira erige o estilo da futura entrevistadora das décadas de 60 e 70.
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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.
[1] É possível encontrar a entrevista na íntegra na dissertação de mestrado de Aparecida Maria Nunes, Clarice Lispector Jornalista, p 59 – 61.
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Referências:
CASTELLO, José. Clarice Lispector. In: Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector “Jornalista”. Dissertação de Mestrado. 2 v. São Paulo: FFLCH-USP, 1991.