Coluna | Sibila
Como o cânone literário ainda privilegia a voz masculina branca, estou sempre em busca de vozes femininas. Há pouco tempo, deparei-me com o seguinte poema, ao qual acrescento, abrindo mão do ritmo original, minha proposta de tradução:
Assez de chants, Liliane. La promesse
Du jour, au soir n’a pas tenu ses fruits.
Ceux qui feront mémoire, dans leurs messes,
De ton labeur l’ignorent aujourd’hui.
Oui, j’arrivai sur terre les mains nues.
Je pars plus pauvre encore, perdant mes biens,
Perdant mon corps, soufflée en la cornue
Du temps cruel qui ne respecte rien.
David est dans le marbre, Dupont taille
Une date et deux noms au cœur du bois.
Baudouin a son profil sur des médailles.
Je n’ai qu’un cri pour témoigner de moi.
–
Basta de cantos, Lilianne. A promessa
Do dia, à noite, não manteve seus frutos.
Aqueles que se lembrarão, em seus cultos,
De teu labor ignoram-no hoje.
Sim, cheguei a terra com as mãos nuas.
Parto ainda mais pobre, perdendo meus bens,
Perdendo meu corpo, soprada na fornalha
Do tempo cruel que não respeita nada
David está em mármore, Dupont talha
Uma data e dois nomes no coração do bosque.
Baudouin tem seu perfil em medalhas.
Eu tenho apenas um grito a me testemunhar.
A ‘Liliane’ do primeiro verso é sua autora, Liliane Wouters, poetisa, dramaturga, ensaísta e antologista belga, falecida em 2016 com 86 anos.
Ao ler este poema, imediatamente pensei em escrever sobre a dificuldade que as escritoras encontram quando desejam publicar e, pior, quando almejam algum tipo de reconhecimento. Meu pensamento não foi injustificado, uma vez que tal poema compõe a obra L’Aloès, publicada quase três décadas depois da publicação de estreia da autora, em 1954, e por ser nominado, torna-se difícil não relacionar os versos acima à vida de Liliane.
A primeira estrofe expressa cansaço de um sujeito poético que demonstra ter criado alguma expectativa que não conseguiu se manter com o passar do tempo. Seria este tempo os vinte e nove anos passados entre a primeira publicação e esta? Há um certo lamento, mas também confiança que os que ignoravam seus versos, um dia, iriam apreciá-los. Ela estava certa.
Não me foi possível manter a ideia inicial para a condução deste texto, já que Wouters, diferentemente da maioria das escritoras estreantes, teve reconhecimento da crítica literária belga já em seu primeiro livro, publicado quando ela tinha apenas vinte e quatro anos. Assim, pode-se deduzir a razão da expectativa presente entre o primeiro e o segundo versos.
A segunda estrofe, à medida que explora a imagem do tempo que se extingue, ou melhor, do tempo que devora tudo e a todos, também explora um certo esvaziamento do sujeito poético iniciado na estrofe anterior, ele nasceu sem nada e morreria com menos ainda. Desse modo, a promessa do que poderia ser, mas não foi, empobrece o sujeito, deixando-o sem bens e, então, sem corpo, sem materialidade.
Se as duas primeiras estrofes poderiam ter me levado a refletir sobre a condição do poeta de um modo geral – já que, costumeiramente, algum tipo de reconhecimento se dá depois da morte do autor –, a última estrofe, no entanto, confirmava meu pensamento em escrever sobre a dificuldade que as mulheres encontram nas artes. Todos os nomes que aparecem são personagens reais masculinos que exerceram alguma posição de poder, David, Dupont e Baudouin. Cada um imortalizado em algo concreto e duradouro com a reprodução de sua imagem – estátua, busto e medalhas, respectivamente. No entanto, o sujeito poético tem apenas seu grito para testemunhar sua existência.
Com o último verso, o poema volta ao primeiro: é ‘Liliane’ que inicia a sequência de nomes. Embora, os homens estejam nomeados, é ela, mulher, quem primeiro nomeia e faz isso consigo mesma, em terceira pessoa. O sujeito afasta-se de si para falar de si mesmo e, então, retoma sua voz em primeira pessoa nas estrofes seguintes, falando dos outros e se colocando entre eles.
Se é possível, em uma primeira leitura do poema, formular a ideia de que o sujeito poético desistiu de ‘cantar’, porque a promessa não se cumpriu e porque o tempo está devorando tudo, esta premissa não se sustenta. Ainda que não seja um homem em posição de poder, o sujeito poético se afirma e se posiciona, com sua voz lírica, marcando sua existência de mulher.
O grito, o clamor relaciona-se diretamente com ‘cantos’. Sabe-se que tal palavra, dentro do universo lírico, denota poema, por sua musicalidade original. Todavia, também carrega em si uma noção de harmonia, algo que não se associa a grito. Assim, há um jogo antitético entre suavidade e intensidade ou harmonia e desconcerto. Quanto de um grito (de mulher), ou melhor, ‘apenas’ um grito pode ser comparado em sua concretude e perenidade à posição masculina dentro de nossa estrutura patriarcal? O grito provocativo de Liliane não se mostra efêmero. A permanência do grito é eco.
Sobre sua própria produção, dizia que nenhuma busca estética ou intelectual a guiava, que o poema respondia a uma necessidade, que era um grito, mas um grito controlado [Aucune recherche esthétique ou intellectuelle ne me guide, le poème répond à um besoin. Mettons que ce soit um cri. Mais um cri contrôlé]. Assim, revela seu trabalho elaborado e nada gratuito. Embora afirmasse não haver uma busca estética e intelectual, experimentou mais de uma forma ao longo do tempo e foi uma agente importante no resgate da poesia belga.
Liliane Wouters imprimiu sua voz em mais de trinta obras, que envolvem poesia, teatro, antologias e ensaios. Como poucas mulheres, foi laureada com seis prêmios literários de grande prestígio. Além disso, dois anos depois da publicação do poema acima, passou a fazer parte da Academia Real de língua e literatura francesas da Bélgica e, em seguida, da Academia europeia de poesia.
Na sua produção lírica, entre seus temas constantes, estão a existência e o amor místico – afinal, era tradutora de Hadewijch, poetisa mística belga do século XIII. A fim de ilustrar estes temas, como não foi possível localizar poemas de Wouters em português e deduzindo que ela não era desconhecida apenas a mim, trago mais três poemas para ecoar esse grito que pode nos dizer tanto.
*
Au bout de l’amour il y a l’amour
Au bout du désir il n’y a rien.
L’amour n’a ni commencement ni fin.
Il ne naît pas, il ressuscite.
Il ne rencontre pas, il reconnaît.
Il se réveille comme après un songe
Dont la mémoire aurait perdu les clefs.
Il se réveille les yeux clairs
Et prêt à vivre sa journée.
Mais le désir insomniaque meurt à l’aube
Après avoir lutté toute la nuit.
Parfois l’amour et le désir dorment ensemble
Et ces nuits-là on voit la lune et le soleil.
–
No início do amor, há o amor
No início do desejo, não há nada.
O amor não tem começo nem fim.
Não nasce, ressuscita.
Não encontra, reconhece.
Desperta como depois de um sonho
Cujas chaves a memória teria perdido.
Desperta com os olhos claros
E pronto para viver seu dia.
Mas o desejo insone morre ao alvorecer
Depois de ter lutado toda a noite.
Às vezes, o amor e o desejo dormem juntos
E, nessas noites, vemos a lua e o sol.
*
Les chiens aboient, la caravane passe.
Fixe un point devant toi, ne daigne
écouter la rumeur.
Fixe un point devant toi, regarde au loin,
même si tout n’est que mirage,
même si loin il n’y a rien.
–
Os cães ladram e a caravana passa.
Fixe um ponto à sua frente, não se permita
escutar o rumor.
Fixe um ponto à sua frente, olhe ao longe,
mesmo se tudo for apenas miragem,
mesmo se longe não houver nada.
*
Tu crois posséder, tu n’as rien.
Tu crois avancer, tu n’as pas bougé.
Tu crois appartenir, tu échappes.
Tu crois habiter, tu traverses.
Tu crois finir, tu commences.
–
Você crê possuir, você não tem nada.
Você crê avançar, você não se move.
Você crê pertencer, você escapa.
Você crê morar, você atravessa.
Você crê acabar, você começa.
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Renata de Castro é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.
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* Lírica, eu sou.
(Imagem de reprodução)